Olhar, ver, reparar: uma análise do caráter inclusivo dos princípios constitucionais a partir do reconhecimento da união estável entre pessoas do mesmo sexo
Autor | Raphael Peixoto de Paula Marques |
Raphael Peixoto de Paula Marques. Bacharel em Direito pela UNIPE (PB). Especialista em Direito Constitucional Contemporâneo pela Universidade de Brasília (UnB). Mestrando em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UnB). Membro do grupo de pesquisa “Sociedade, Tempo e Direito” (UnB). Procurador Federal. E-mail: raphapeixoto@gmail.com.
Em Ensaio sobre a cegueira, o escritor português José Saramago escreve sobre um tipo de cegueira que acomete repentinamente todos os seres humanos. A deficiência visual descrita no romance não é daquela espécie que nos coloca nas trevas; ao contrário, ela é uma cegueira branca que, no fundo, representa uma alegoria à falta de solidariedade e sensibilidade da sociedade contemporânea. Em sua obra, Saramago nos convida a refletir sobre nossa condição moral na atual modernidade da sociedade moderna, lembrando sempre a responsabilidade de “ter olhos quando os outros os perderam”.1 Essa advertência não se resume a simples capacidade de olhar, mas exige, também, uma sensibilidade para ver. E sendo capaz de ver, deve-se reparar. Não apenas no sentido de observar os detalhes e significados das coisas, mas, sobretudo, no sentido de correção, de recuperação, de compensação, do que e de quem foi injustamente excluído, recusado, privado.
A metáfora da cegueira é útil para analisar a questão da união estável entre pessoas do mesmo sexo. Por muito tempo, a orientação sexual era tematizada não como diferença a ser reconhecida pelo Direito, mas como imposição valorativa de uma maioria heterossexual. O preconceito e a exclusão eram ditados por uma espécie de cegueira que estabelecia e institucionalizava um tipo de invisibilidade social e jurídica.2
O debate em torno do direito à não ser discriminado pela orientação sexual alcançou, inclusive, à Assembléia Constituinte de 1987-1988. Segundo José Afonso da Silva, tentou-se introduzir, no processo constituinte, uma norma que vedasse a discriminação dos homossexuais,
mas não se encontrou uma expressão nítida e devidamente definida que não gerasse extrapolações inconvenientes. Uma delas fora conceder igualdade, sem discriminação de orientação sexual. […] Teve-se receito de que essa expressão albergasse deformações prejudiciais a terceiros3.
Vale lembrar que, menos de dois anos depois da promulgação da Constituição, em 17 de maio de 1990, a Organização Mundial de Saúde (OMS) retirou a homossexualidade da Classificação Internacional de Doenças, declarando que “a homossexualidade não constitui doença, nem distúrbio e nem perversão”. O mesmo já tinha sido feito pelo Conselho Federal de Medicina já no ano de 1985. O Conselho Federal de Psicologia, por sua vez, editou em 1999 uma resolução determinando aos profissionais da área que não exercessem “ação que favoreça a patologização de comportamentos ou práticas homoeróticas”.4
Não obstante essa mudança gradual de mentalidade, o que restou assentado no texto do art. 226, §3º, da Constituição Federal de 1988, foi que “é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar”.
Como ler essa disposição constitucional? Como conciliar uma interpretação literal, que caminharia para uma exclusão da união estável entre pessoas do mesmo sexo, com o direito à liberdade e à igualdade previstos no art. 5º da Constituição brasileira? Qual o conceito de família implícito no art. 226? Afinal, o que uma constituição constitui? Há vedação expressa na legislação infraconstitucional? Como a questão é vista do ponto de vista internacional, isto é, a partir dos tratados de direitos humanos ratificados pelo Brasil? Essas são algumas indagações que devemos responder antes de se posicionar sobre o tema.5
De início, quero assinalar que interpretar a Constituição não é a mesma coisa que interpretar uma lei, uma resolução ou uma portaria. Todos sabemos, até mesmo vivencialmente, que a Constituição é uma aquisição evolutiva da modernidade que estabelece uma assimetria no Direito, servindo de medida de conformidade ou não-conformidade ao conteúdo de todas as outras leis e atos jurídicos.6 Para ser mais direto: levar a sério a Constituição é considerar que tipo de documento ela é, o que ela constitui e qual a sua hierarquia dentro do sistema jurídico. Para falar com Paulo Bonavides, “ontem, o Código, hoje, a Constituição”.7
Para esse fim, necessário o esclarecimento da concepção de Constituição que estou adotando. Seguindo a linha de Ronald Dworkin, entendo que a concepção que faz jus à nossa história constitucional, dando continuidade, à melhor luz, ao desenvolvimento permanente dos ideais de igualdade e liberdade, seja uma concepção abstrata e principiológica de Constituição.8 Uma Constituição não é uma apólice de seguros ou um contrato de arrendamento mercantil, mas um documento que constitui uma comunidade fundada sobre princípios que se alicerçam sobre o reconhecimento recíproco da igualdade e liberdade de todos e de cada um de seus membros.9 Como bem ensina Menelick de Carvalho Netto,
[...] esse conteúdo quando incorporado ao Direito como direitos fundamentais, como princípios constitucionais, ou seja, como a igualdade reciprocamente reconhecida de modo constitucional a todos e por todos os cidadãos, bem como, ao mesmo tempo, a todos e por todos é também reconhecida reciprocamente a liberdade, só pode significar, como histórica e muito concretamente pudemos aprender, a igualdade do respeito às diferenças, pois embora tenhamos diferentes condições sociais e materiais, distintas cores de pele, diferentes credos religiosos, pertençamos a gêneros distintos ou não tenhamos as mesmas opções sexuais, devemos nos respeitar ainda assim como se iguais fôssemos, não importando todas essas diferenças”.10
Dessa forma, pode-se reorientar a discussão sobre como se deve ler o catálogo constitucional de direitos fundamentais, na medida em que, se a Constituição consiste em um conjunto de princípios amplos e abstratos de moral política, a correta aplicação desses princípios a casos particulares depende de uma questão interpretativa e de uma percepção de moralidade política da comunidade, e não de uma simples regra lingüística ou referência semântica. É por isso que a distinção entre direitos constitucionalmente enumerados e direitos constitucionalmente não enumerados – ou direitos expressos e direitos implícitos – não tem o menor sentido.11 Ora, qual o significado de “vida”, “igualdade”, “liberdade” ou mesmo “dignidade humana”? Quem pensa que do simples sentido das palavras “direito à vida” pode-se concluir pela possibilidade de pesquisa com células-tronco? E a adoção do sistema de cotas no ensino público para negros do princípio da “igualdade”? Será que o direito à liberdade de expressão autoriza o discurso de ódio contra judeus? Ou a possibilidade de fornecimento gratuito de remédios que não constam da lista do SUS com base no “direito à saúde”? Todos esses casos foram decididos pelo Supremo Tribunal Federal e demonstram que em nenhum deles o resultado decorre da semântica das palavras, mas de uma prática interpretativa orientada por princípios que atualizam e perenizam o sistema, sempre aberto e incompleto, dos direitos constitucionais. Nesse sentido, “os direitos fundamentais somente podem pretender-se permanentes precisamente porque somos capazes de relê-los de uma perspectiva sempre e cada vez mais inclusiva”.12
Partindo dessa premissa, por que negar a possibilidade jurídica da união estável entre pessoas do mesmo sexo, se a própria Constituição, que é por natureza um documento dinâmico e sempre inconcluso, não o faz expressamente? Aqui, levo em conta que
[...] é justamente pelo caráter abstrato e universal da linguagem em que se expressam constitucionalmente esses direitos fundamentais que é possível a sua ampliação mediante a explicitação em lei do que agora eles significam para nós. Torna-se claro agora, para nós, que o reconhecimento dessa diferença específica como direito à igualdade sempre esteve autorizado pela afirmação desses princípios, nós que não éramos capazes de ver a injustiça até então perpetrada. Dessa sorte é que essa explicitação mediante lei, atuação administrativa ou decisão judicial, na verdade, não altera a Constituição, apenas explicita o patamar alcançado por nossa comunidade de princípios no mais fiel cumprimento da Constituição, comprovando o sucesso vivo e pulsante do que ela constituiu”.13
A própria Constituição de 1988 prevê no seu art. 5º, §2º – dispositivo que remonta à Constituição de 1934 – uma cláusula de abertura “de forma a abranger, para além das positivações concretas, todas as possibilidades de direitos que se propõem no horizonte da acção humana”14:
Art. 5º. Omissis
§ 2º - Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.
A Constituição, portanto, não se resume apenas à literalidade dos seus textos. Textos constitucionais sozinhos significam muito pouco; eles apenas inauguram o problema do Direito.15 A coerência e o caráter harmônico do ordenamento jurídico não se dão no plano das normas gerais e abstratas, mas no plano de sua aplicação às situações concretas, através do conjunto de decisões administrativas e judiciais que desenvolvem esse patrimônio constitucional. Sugiro, desse modo, que entendamos a Constituição como um projeto sempre inacabado, de aprendizado permanente, que deve ser constantemente refundamentado e relegitimado pela inclusão das diferenças. “Se não, não é Constituição”.16 Essa característica de abertura...
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