O Renascimento do Direito do Trabalho no Século XXI: a Experiência Brasileira de 2003 a 2010

AutorRoberta Dantas de Mello
Páginas133-149

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Introdução

Desde meados do século XIX e início do século XX na Europa Ocidental, o Direito do Trabalho serviu como contraponto ao poder supostamente incontestável do empregador na exploração da força de trabalho, com o intuito de viabilizar a pacificação social.

Embora essa situação fosse suficiente para a emergência, a afirmação e o desenvolvimento do ramo juslaboral como principal instrumento para controlar e atenuar as distorções socioeconômicas inevitáveis do mercado e do sistema capitalistas, conduzindo à desmercantilização do trabalho, no desenrolar do século XX este cuidado com a dimensão promocional das grandes maiorias populacionais foi emancipado.

No contexto dessa emancipação, o Direito do Trabalho também passou a se revelar como mecanismo de preservação do próprio capitalismo e da sociedade democrática.

Ao partir do pressuposto de que se compreende a evolução e o papel históricos do tipo de relação construída entre Direito do Trabalho e capitalismo, busca-se neste artigo1,

ainda que de forma sucinta, sedimentar o que há muito tempo uma das maiores autoridades acerca do ordenamento jurídico trabalhista na história brasileira, em todos os aspectos - jurídico, político, econômico e social -, Mauricio Godinho Delgado, defende e perpetua em seus ensinamentos: uma das formas para a plena realização da Democracia na sociedade atual se encontra na renovação da centralidade do trabalho, notadamente do emprego, no sistema socioeconômico capitalista contemporâneo.

A História ocidental retrata que, por meio de políticas públicas e de normas jurídicas, é possível a realização do trabalho digno, para a maior parte dos diversos segmentos sociais e, por consequência, a concretização da Democracia.

1. Direito do trabalho: produto e instrumento do capitalismo e ordem para o capitalismo

O capitalismo, praticamente desde a sua formação no século XVIII, foi marcado pela ideia matriz da mercantilização do trabalho2. Assim, passou a ser alvo de críticas que convergiam em torno da essencialidade do valor trabalho, principalmente em face dos "efeitos colaterais" que causava: concentração de renda, desigualdade, discriminação e exclusão sociais3.

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Na transição dos séculos XIX/XX, não por acaso, inicia-se "um inovador e irresistível processo de democratização real das sociedades", sendo um de seus frutos o ramo jurídico destinado a tratar de "segmentos sociais classicamente destituídos de riqueza e de poder, conferindo-lhes certo poder e certa integração ao sistema produtor e distribuidor de riquezas": o Direito do Trabalho, principal forma de conexão do indivíduo à economia capitalista, por meio da relação empregatícia4.

Seguindo esta tendência e na tentativa de aliviar as maléficas consequências decorrentes do sistema econômico, de forma espontânea ou estratégica5, na primeira metade do século XX, vertentes reformistas-democráticas buscariam a adequação do sistema capitalista às demandas socioeconômicas e culturais.

A matriz crítica hegemônica - diante da percepção de que a conduta laborativa viabiliza a afirmação do ser humano não só na sua própria individualidade, como também nos planos de sua inserção familiar, social, econômica e, até, ética - valia-se do primado do trabalho como um de seus postulados fundamentais para a sociedade capitalista. Afinal, primar pelo trabalho e particularmente, pelo emprego, "consiste em fórmula eficaz de distribuição de renda e de poder na desigual sociedade capitalista"6.

Logo, na estruturação da democracia social, o trabalho, especialmente o emprego - regulado e protegido por normas jurídicas - desponta como "o mais relevante meio garantidor de um mínimo de poder social à grande massa da população, que é destituída de riqueza e de outros meios lícitos de alcance desta", posicionando-se no "epicentro de organização da vida social e da economia"7.

Entre as vertentes reformistas-democráticas, destaca-se a que cogitava um novo paradigma de Estado, o Estado de Bem-Estar Social (EBES), ou Welfare State, por representar uma das maiores conquistas da democracia no mundo ocidental capitalista, por meio da qual o mundo viveu os chamados "anos dourados".

A implementação dos EBES, ocorrida no século XX, sintetiza, em sua variada fórmula de gestão pública e social,

"[...] a afirmação de valores, princípios e práticas consideradas fundamentais: democracia, valorização do trabalho e do emprego, justiça social e bem-estar"8 - 9.

No período especialmente compreendido no pós- -Segunda Guerra Mundial até o início da década de 1970, houve crescimento econômico associado ao desenvolvimento social, resultado da vigência dos Welfare States e da prevalência da orientação keynesiana de gestão econômico-social do capitalismo.

Por meio do trabalho - de modo específico, da sua forma regulada (relação de emprego) -, o sistema de produção capitalista descobriu uma modalidade de conexão específica dos indivíduos às necessidades organizacionais e produtivas do capital10.

Nas democracias ocidentais mais avançadas, com base em um Direito do Trabalho efetivo, alcançaram-se a integração social, a distribuição de renda e a democratização social.

Nesta lógica, imperioso ressaltar o papel do ramo juslaboral no capitalismo:

[...] o que a realidade histórica do próprio capitalismo demonstra é que o Direito do Trabalho consiste no mais abrangente e eficaz mecanismo de integração dos seres humanos ao sistema econômico, ainda que considerados todos os problemas e diferenciações das pessoas e vida social. Respeitados os marcos do sistema capitalista, trata-se do mais generalizante e consistente instrumento assecuratório de efetiva cidadania, no plano socioeconômico, e de efetiva dignidade no plano individual. Está-se diante, pois, de um potente e articulado sistema garantidor de significativo patamar de democracia social. DELGADO, Mauricio Godinho. Capitalismo, trabalho e emprego: entre o paradigma da destruição e os caminhos de reconstrução. São Paulo: LTR, 2006. p. 128.

Sendo a relação empregatícia a categoria específica do Direito do Trabalho, "a partir da qual se constroem os princípios,

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regras e institutos essenciais desse ramo jurídico especializado, demarcando sua característica própria e distintiva perante os ramos jurídicos correlatos", o conteúdo do ramo justrabalhista se molda também a partir do vínculo empregatício11 - 12.

Sinteticamente, configura-se a relação empregatícia se todos os elementos fático-jurídicos estiverem reunidos (prestação laborativa de uma pessoa física de forma subordinada, não eventual e onerosa, a outra pessoa natural, jurídica ou ente despersonificado). Do contrário, se apenas houver prestação de serviços a outrem por pessoa física, sem a prevalência dos demais elementos destacados, qualifica-se como relação de trabalho.

Ainda que a relação de emprego seja, tecnicamente, uma espécie do gênero relação de trabalho, destaca-se como a mais importante existente no sistema econômico e social capitalista, uma vez que

Por meio da relação de emprego é que o novo sistema emergente no século XVIII na Europa - Inglaterra, em particular- descobriu uma modalidade de conexão específica dos trabalhadores às necessidades organizacionais e produtivas do capital, sem as peculiaridades restritivas de cunho econômico, social, tecnológico e cultural das modalidades anteriormente dominantes na experiência histórica (escravidão e servidão). DELGADO, Mauricio Godinho. Relação de emprego e relações de trabalho: a retomada do expansionismo do direito trabalhista. In: SENA, Adriana Goulart de; DELGADO, Gabriela Neves; NUNES, Raquel Portugal. Dignidade humana e inclusão social: caminhos para a efetividade do direito do trabalho no Brasil. São Paulo: LTR, 2010. p. 20.

Mauricio Godinho Delgado, ao observar "a vinculação umbilical da relação de emprego com a genialidade produtiva do capitalismo", ressalta que "essa nova relação social [...] e sua estrutural inserção na empresa foram requisitos exponenciais para a configuração desse novo sistema e para seu desenvolvimento contínuo nas décadas e séculos seguintes." Em outros termos, da mesma forma que "a existência do capital intensivo (acumulação de riqueza aplicada e também riqueza líquida) e da tecnologia inovadora (trabalho cristalizado)" foram essenciais para a criação e propagação do sistema socioeconômico capitalista, "a descoberta dessa nova forma de utilização do trabalho e de sua consequente inserção no centro produtivo" foram decisivas para o surgimento e generalização do capitalismo13.

A relação empregatícia efetivamente se estrutura como categoria socioeconômica e jurídica no desenrolar do processo da Revolução Industrial (séculos XVII e XVIII), sendo que passa a responder pelo modelo principal de vinculação do trabalhador livre ao sistema produtivo emergente. Assim, "[...] apenas a partir do instante em que a relação de emprego se torna categoria dominante como modelo de vinculação do trabalhador ao sistema produtivo é que se pode iniciar a pesquisa sobre o ramo jurídico especializado que se gestou a relação empregatícia"14.

Ao mencionar que a relação de emprego decorre do "trabalho livre mas simultaneamente subordinado", Mauricio Godinho Delgado discorre que por meio dessa relação é possível

[...] empresário usufruir do máximo da energia, da emoção, da inteligência e da criatividade humanas, dando origem a um mecanismo de integração da pessoa ao sistema produtivo dotado de potencialidade máxima no tocante à geração de...

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