O renascimento do direito comparado Estudo em homenagem a Ana Maria Vilela

AutorLuiz Fernando Coelho
CargoProfessor da Universidade Federal do Paraná. da Faculdade Internacional de Curitiba (Facinter) e da Faculdade de Direito de Francisco Beltrão (CESUL)
Páginas5-14

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1. A crise ética do direito capitalista

Ana Maria Vilela foi a grande representante do comparatismo no Brasil. A reflexão sobre as possibilidades de resgate do direito comparado, com o sentido e alcance que os mestres da Association Internationale de Droit Comparé e da Faculté Internacionale pour l’Enseignement du Droit Comparé de Estrasburgo e Barcelona lhe imprimiram, desde os anos sessenta, é uma homenagem que ela certamente haverá de apreciar, desde a dimensão atemporal em que seu espírito se encontra.

Na Europa do pós-guerra, consumida pelo ódio entre as nações, pela lembrança do holocausto e das atrocidades cometidas contra as populações civis, pareceu aos cultores da ciência do direito que esta poderia ser tão universal quanto as demais, a despeito da compartimentação que as fronteiras geopolíticas dos Estados impunham a seu objeto. O repensar dos fundamentos do direito em função da metodologia engendrada pelo direito comparado representou, nesse contexto, um dos esforços mais profícuos para a superação do vetusto ceticismo epistemológico que minimizava o caráter científico dos estudos jurídicos, relegando-os a mera técnica de persuasão, simples exercício de um jogo argumentativo.

Pensava-se, com o direito comparado, restabelecer a dimensão universalista do direito como forma de saber, mas tal desiderato viu-se evidentemente frustrado nos tempos atuais, devido a uma conjugação de fatores os mais diversos: a parafernália legislativa que tem inundado os direitos positivos das nações modernas, a maior complexidade das relações jurídicas, o domínio cada vez maior da mentalidade dogmática no trabalho profissional dos operadores do direito, a própria educação jurídica, cada vez mais voltada para a busca de resultados imediatos nesse trabalho, a consequente minimização da teoria geral e da filosofia do direito nos currículos dos cursos jurídicos, tudo isso contribuiu para que o direito comparado, como método e como ciência, caísse em relativo esquecimento.

E assim, o projeto epistêmico de uma ciência jurídica universal parece cada vez mais distante, em face do triunfo da concepção dogmática do direito e da avassaladora virtualização da vida jurídica, em função de uma tecnologia da informação jurídica cada vez mais sofisticada.

Nesse contexto, o resgate dos ideais do comparatismo talvez sirva para inspirar os operadores do direito a contribuírem para que o direito se transforme em veículo de impregnação da ética nas relações humanas. Levando-se em conta que o mundo atual em nada difere do vivido pelos comparatistas dos anos sessenta, salvo o agravamento dos problemas que sempre afligiram a humanidade, bem como sua maior amplitude, eis que hoje extravasam o âmbito relativamente restrito em que ocorriam, para adquirir dimensões planetárias, oferece certamente o quadro para um renascimento não somente do direito comparado como forma de saber jurídico, como também, e principalmente, dos ideais do comparatismo.

A lembrança desse mesmo contexto justifica que tal reflexão principie pelo estudo da atual crise do direito, a qual se confunde com a crise ética do capitalismo neoliberal globalizado.

Quando se observa o panorama mundial, nota-se que o progresso científico e tecnológico muito pouco está contribuindo para superar as mazelas que ainda separam os povos da terra, pois o mundo está sendo levado a aprofundar os desequilíbrios sociais e, em muitas regiões, ao agravamento da fome, da miséria, do desemprego e da desesperança.

Esperava-se que, após a queda do muro de Berlim em novembro de 1989, as ameaças de guerra a nível mundial, envolvendo as superpotências estatais, estariam relegadas ao passado. Entretanto, dados coligidos por entidades governamentais e não governamentais, como o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados e o Conselho de Defesa Nacional dos EUA reportam que, até novembro de 1995 mais de cinquenta milhões de pessoas haviam sido forçadas a abandonar seus lares, para fugir de conflitos, atrocidades e diversas formas de intolerância, perseguição e opressão. Cerca de setenta e um conflitos armados haviam sido contados entre 1789 e 1989, destacando-se as crueldades cometidas por déspotas e ditadores contra seu próprio povo. Reporta a agência de notícias Associated Press (AP) que, durante o século XX, os assassinatos perpetrados no interior das nações, a guerra da nação contra seu próprio povo, haviam excedido as mortes causadas pelas guerras convencionais contra inimigos de fora das fronteiras. E cita os expurgos estalinistas, a revolução cultural chinesa, os campos da morte do Camboja, a chamada limpeza étnica na Bósnia, os horrores de Ruanda – mais de 170 milhões de vidas sacrificadas pela intolerância ideológica1.

O que esperar do século que ora se inicia? O historiador Arthur Schlessinger, ganhador do prêmio Pulitzer, adverte que, se o século XX foi o século da guerra das ideologias, o século XXI começaPage 6como sendo o das guerras étnicas. E com efeito, as antigas ameaças guerreiras que opunham Estados e nações, hoje foram substituídas por guerras relacionadas com terrorismo, fundamentalismo político e religioso, conflitos étnicos e tribais, narcotráfico e novas formas de escravidão, como a prostituição e o tráfico internacional de trabalhadores, que, para fugir do desemprego em seus países de origem, submetem-se a condições desumanas de trabalho, contanto que tenham trabalho.

Não será exagero afirmar que por detrás desse panorama impressionante, nada alentador, está a ética, ou melhor, a falta de ética do capitalismo global.

A tendência fundamental do capitalismo é seu próprio fortalecimento, o que exige uma expansão contínua, dissimulada sob o eufemismo do crescimento econômico constante, e, daí, o não menos constante crescimento da demanda de mercadorias, pois o consumo, por mais que cresça em termos absolutos, absorve apenas parte da mais-valia apropriada, a qual tende a jamais ser suficiente para fazer reverter a produção.

Essa lógica do crescimento contínuo está aliada à busca do maior lucro possível, o que exige a destruição de todas as formas alternativas ligadas à economia natural voltada para a simples satisfação das necessidades elementares da vida com dignidade.

A situação atual confirma essa característica essencial do capitalismo e sua lógica interna, que exige a concentração da produção, com tendência a monopólios, o fortalecimento dos bancos, que manipulam valores cada vez maiores, e a exportação de capitais, que tende a ser mais característica da atual fase de expansão do que a exportação de mercadorias.

Como consequência dessa lógica intrínseca, o excedente de capitais não se consagra à elevação do nível de vida interno, mas, sim, à emigração e procura de áreas menos desenvolvidas em que encontre aplicação mais lucrativa. Ou seja, o capital é apátrida, como também aético.

Algumas respeitáveis opiniões, entre as quais as de Pierre Bourdieu e Alain Tourraine, admitem uma ética do mercado contraposta às exigências da equidade social como a única que se mantém após o desmoronamento do comunismo. Uma ética de comerciantes, a qual faz às vezes de moral pública e persegue a trindade moral clássica da bondade, beleza e verdade.

Por outro lado, os atuais teóricos do capitalismo procuram banalizar uma ética que, se não é nova, como já asseverara Max Weber2, renova-se em argumentos de base empírica que vão fundamentar uma escala de valores adequada aos interesses do capital, com repercussões no conceito mesmo de justiça, subordinando-o aos sentimentos das well ordered societies3, bem como uma racionalidade puramente instrumental, que tudo subordina à relação de causalidade entre meios e fins.

A cavaleiro das transformações da economia mundial, e reforçada pela ideia esdrúxula do fim da história4, essa ética tende hoje a identificar os valores da cultura europeia e americana, impregnados das noções básicas do capitalismo, que reforçam o direito de propriedade, a liberdade contratual e a livre iniciativa, como o que de melhor a humanidade terá produzido e que jamais produzirá.

Marx já enfatizara a produção da mais-valia como o mecanismo pelo qual o capitalismo se desenvolve, e nenhuma ética é hoje capaz de elidir ou justificar esse fato prosaico que, para alguém enriquecer, é necessário, além do próprio trabalho, o concurso do trabalho de outros, cuja produção transformada em mercadoria tende a acumular-se nas mãos de quem enriqueceu à custa do trabalho alheio.

O aspecto predador do modo capitalista de produção é posto em destaque por Rosa Luxemburgo, relevando que a generalização da forma mercantil do produto atribui ao modo de produção capitalista um poder desagregador frente aos outros modos de produção aos quais se opõe. Enquanto as formações pré-capitalistas se caracterizam pela coexistência estável de modos diversos, articulados e hierarquizados, o modo capitalista destrói os outros modos. Ele se caracteriza assim pela tendência a converter-se em exclusivo, tendência que pressupõe, ademais, a expansão e aprofundamento do mercado interno, isso nas formações capitalistas centrais. Nas formações capitalistas periféricas, o modo capitalista dominante submete os outros ligados à economia natural, priva-os de sua funcionalidade e submete-os à sua própria, sem desagregá-los ou destruílos radicalmente. Salienta a autora que as organizações sociais primitivas constituem a base da existência material das sociedades e, na medida em que representam obstáculo à expansão do capitalismo como forma prevalecente de produção, o método inicial do capital é a destruição e aniquilamento sistemático das organizações sociais não capitalistas que enfrenta em seu processo de expansão. O resultado direto do choque entre o capitalismo e as formações de economia...

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