O renascimento do direito comparado

AutorLuiz Fernando Coelho
Páginas171-199
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– IX –
O RENASCIMENTO DO DIREITO COMPARADO
Estudo em homenagem a Ana Maria Vilela
Sumário: 1. A crise ética do direito capitalista. 2. Breve
introdução ao direito comparado. 3. O nivelamento dos
sistemas jurídicos. 4. A globalização do direito. 5. A ética do
direito e o ideal comparatista.
1. A crise ética do direito capitalista
Ana Maria Vilela foi a grande representante do comparatismo no
Brasil. A reflexão sobre as possibilidades de resgate do direito
comparado, com o sentido e alcance que os mestres da Association
Internationale de Droit Comparé e da Faculté Internacionale pour
l’Enseignement du Droit Comparé de Estrasburgo e Barcelona lhe
imprimiram, a partir dos anos de 1960, é uma homenagem que ela
certamente haverá de apreciar, desde a dimensão atemporal em que seu
espírito se encontra.
Na Europa do pós-guerra, consumida pelo ódio entre as nações,
pela lembrança do holocausto e das atrocidades cometidas contra as
populações civis, pareceu aos cultores da ciência do direito que esta
poderia ser tão universal quanto as demais, a despeito da compart-
imentação que as fronteiras geopolíticas dos Estados impunham a seu
objeto. O repensar dos fundamentos do direito em função da metodologia
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construída pelo direito comparado representou, nesse contexto, um dos
esforços mais profícuos para a superação do vetusto ceticismo
epistemológico que minimizava o caráter científico dos estudos jurídicos,
relegando-os a mera técnica de persuasão, simples exercício de um jogo
argumentativo.
Pensava-se, com o direito comparado, restabelecer a dimensão
universalista do direito como forma de saber, mas tal desiderato viu-se
evidentemente frustrado nos tempos atuais, devido a uma conjugação
de fatores os mais diversos: a parafernália legislativa que tem inundado
os direitos positivos das nações modernas, a maior complexidade das
relações jurídicas, o domínio cada vez maior da mentalidade dogmática
no trabalho profissional dos operadores do direito, a própria educação
jurídica, cada vez mais voltada para a busca de resultados imediatos
nesse trabalho, a consequente minimização da teoria geral e da filosofia
do direito nos currículos dos cursos jurídicos, tudo isso contribuiu para
que o direito comparado, como método e como ciência, caísse em relativo
esquecimento. E assim, o projeto epistêmico de uma ciência jurídica
universal parece cada vez mais distante, em face do triunfo da concepção
dogmática do direito e da avassaladora virtualização da vida jurídica,
em função de uma tecnologia da informação jurídica cada vez mais
sofisticada.
Nesse contexto, o resgate dos ideais do comparatismo talvez sirva
para inspirar os operadores do direito a contribuírem para que o direito
se transforme em veículo de impregnação da ética nas relações humanas.
Levando-se em conta que o mundo atual em nada difere do vivido pelos
comparatistas dos anos 1960, salvo o agravamento dos problemas que
sempre afligiram a humanidade, bem como sua maior amplitude, eis
que hoje extravasam o âmbito relativamente restrito em que ocorriam
para adquirir dimensões planetárias, ele oferece certamente o quadro
para um renascimento não somente do direito comparado como forma
de saber jurídico, como também, e principalmente, dos ideais do
comparatismo.
A lembrança desse mesmo contexto justifica que tal reflexão
principie pelo estudo da atual crise do direito, a qual se confunde com a

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