O Renascimento

AutorMônica Sette Lopes
Páginas74-94
O Renascimento
A palavra que condensa o espírito deste tempo é huma-
nismo. No entanto, esta volta do ser humano à cena central não se
fez por uma decisão altruísta ou benemérita, como uma dádiva do
tempo, mas à força de um somatório de circunstâncias que exalaram
de matrizes formadoras múltiplas.
O mundo abriu-se e a visão do ser humano projetou-se im-
pulsionado pelas descobertas cientícas.
No tempo das Grandes Navegações, os espaços para o
exercício do poder se ampliaram. Mais uma vez pode tomar-se o ca-
minho do nomos com Carl Schmitt e experimentar a força com que
interesses dividiam (e dividem) os territórios e marcavam sobre ele a
linha de contenção do direito:
A terra é dividida por fronteiras linearmente claras em ter-
ritórios estáticos e em espaços de dominação. O mar não
conhece estas fronteiras além da costa. É a única superfície
acessível a todos os Estados, aberta ao comércio, à pesca
e ao livre exercício da guerra marítima e ao direito de pi-
lhagem na guerra marítima, sem considerar vizinhança ou
fronteira geográca [...] A grande decisão global do direito
das gentes nos séculos XVI e XVII culminou então num
equilíbrio entre terra e mar, no face-a-face de duas ordens
que determinaram o nomos da terra apenas pela tensão de
sua coexistência”161.
Os espaços a ocupar alcançavam novas terras e o domí-
nio disperso dos mares. Havia, porém, a necessidade de certezas e
de denição explícita dos limites de conduta nas novas relações que
se evidenciam. Paradoxalmente, esta abertura xou os homens nas
cidades e criou focos de centralização de poder que levaram ao for-
talecimento de uma ordem normativa que se expressou na lei ou no
direito da cidade, consolidando a ideia de um direito comum.
Os músicos inseriram-se nas atividades da cidade que se
desenvolviam e assumiram nelas funções públicas. É assim que, em
161 SCHMITT, 2001, p. 171-2.
muitos casos, eles representaram papel importante no divertimento
das pessoas nas cerimônias, o que abrangia casamentos, velórios e
outras festividades. Ainda que a situação variasse de uma para ou-
tra, em várias delas, os músicos exerciam simultaneamente funções
paralelas, como a de vigia, que incluía o toque de instrumento para
anunciar incêndio ou a chegada de viajantes162.
Não se está certamente às voltas com um fato-momento que
tenha deagrado todo um circuito de alterações. Ao contrário, o es-
tudo da história do direito e da música desta época faz transparecer
uma conjunção de situações que propiciaram o aprimoramento de
um ideal de racionalidade ou de orientação do pensamento humano
no sentido deste desvendar de certezas e de formulações sistemáticas
que encontraram, no próprio ser humano e em sua capacidade de
mudar e de compreender a natureza, a sua justicativa. A seguran-
ça era uma necessidade num tempo em que os homens passavam a
conviver numa comunidade de maior complexidade e em que noção
do espaço percorria o campo estreito da cidade e da zona aberta do
Novo Mundo conquistado. A sensação talvez incluísse a constatação
de que os humanos poderiam dominar a natureza, conquistá-la e
isto se estampou nas artes163 e no direito.
“O que o homem ocidental procurava agora era um ar-
cabouço sólido, um ponto de referência seguro. Era uma época de
fascínio por números e mensuração. O instrumento mais simples
e preciso que se apoiava no sistema mecânico numérico era o reló-
gio, que começou a dominar o ritmo da vida, muito mais do que o
sol e as estrelas. Igualmente, na música estava sendo formulada uma
legislação rítmica e harmônica, um sistema por cujo intermédio as
vozes dos instrumentos e do homem podiam soar individualmente
e em grandes conjuntos, sem criar cacofonia ou dissonâncias into-
leráveis”164.
Eram necessários instrumentos que marcassem, denis-
sem e registrassem os tempos do direito e da música. A tendência
uniformizadora implicou a construção de uma legislação para a mú-
sica e para o direito, ou seja, a composição de um sistema harmônico
162 Cf. o desenvolvimento do tema em RAYNOR, 1981, p. 69-84.
163 Cf. PANOFSKY, 2000, p. 46-8.
164 MENUHIN, DAVIS, 1990, p. 87.

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