Liberdade religiosa e ordenamento jurídico: do padroado ao recente Acordo Santa-Sé/Brasil

AutorPe. Jesus Hortal Sánchez, S.J.
CargoReitor da PUC-Rio.
Páginas232-240

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No dia 13 de novembro de 2008, durante uma audiência privada do Presidente Luiz Inácio da Silva e o Papa Bento XVI, foi assinado um Acordo entre a República Federativa do Brasil e a Santa Sé, relativo ao estatuto jurídico da Igreja Católica no Brasil. Muitos se perguntaram e se perguntam sobre o sentido desse ato. Alguns levantaram objeções do ponto de vista da laicidade do Estado; outros estranharam que o documento não fosse chamado de Concordata; outros, em fim, temeram que, de algum modo, o regime do padroado estivesse sendo ressuscitado e que as confissões religiosas não católicas passassem a ser consideradas de segunda categoria. Será bom, portanto, esclarecer alguns conceitos e examinar pormenorizadamente o acordo.

A Igreja Católica, como é sabido, viveu, no Brasil, até 1890, sob o regime do padroado, supostamente baseado na ajuda que os Estados Ibéricos prestaram à Igreja na reconquista contra o Islã. Nesse regime jurídico de fato, o Estado se constituiu em guardião e tutor da Igreja, assegurando-lhe os meios econômicos de subsistência e o exercício da jurisdição sobre os fiéis, mas controlando todas as nomeações para cargos eclesiásticos e até arrogando-se o poder de veto sobre as disposições canônicas, inclusive as emanadas da Santa Sé ou dos Concílios Ecumênicos, embora não chegasse até os extremos dos “Reis sacristães” da Áustria. Pode-se discutir se era mais forte a intervenção do Estado na Igreja ou a da Igreja no Estado. Em todo caso, a confusão de esferas eraPage 233notória. A Independência do Brasil não alterou essa situação. A Constituição de 1823, de modo unilateral, contra a posição defendida pela Santa Sé, que desejava uma renegociação de seu estatuto jurídico no Brasil, declarou a continuidade do regime do padroado, que não encontrava base em qualquer acordo entre a Igreja Católica e o Império do Brasil. Nem no primeiro nem no segundo Império, chegou-se a assinatura de qualquer pacto entre ambas partes. Tal ordem de coisas somente terminará com o Decreto 119A, redigido por Ruy Barbosa e promulgado pelo Governo Provisório da República, que expressamente declarou extinto o padroado1. O quadro de liberdade religiosa criado pelo Decreto é bem amplo, inclusive com garantias formais, mas com um grande grau de ambigüidade e incerteza. O ponto mais típico a esse respeito foi o do reconhecimento da personalidade jurídica das igrejas. Qual era o seu nível de aplicação: nacional, estadual ou local? Tratava-se da Igreja Católica, como um todo, das dioceses, das paróquias...? Por isso, quase desde os inícios da vigência do citado Decreto, houve tentativas de negociar um acordo entre a Santa Sé e o Brasil. O primeiro intento formal de chegar a um pacto entre ambos os poderes aconteceu em 1953, durante o segundo período Vargas. Eu mesmo tive oportunidade de participar, durante o Governo Itamar Franco de uma comissão nomeada pela CNBB, para preparar um possível acordo. As coisas se foram alastrando até que a Nunciatura, embora com o concurso da própria Conferência Episcopal, avocou a si a matéria, levando-se as negociações com a discrição própria do mundo diplomático. É assim que se chegou ao citado acordo de 13 de novembro de 2008.

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A primeira questão que se pode levantar em relação a esse documento é por que não é designado com o tradicional nome de concordata. A verdade é que essa denominação quase ficou em desuso após a Segunda Guerra Mundial e, sobretudo, após o Concílio Vaticano II. A primeira concordata de que temos memória – chamada de Concordata de Worms – foi a de 1122, entre a Santa Sé e o Sacro Império Germânico, firmada para pôr fim à luta das investiduras. Essa foi uma característica histórica das concordatas: quase sempre assinadas para solucionar pendências e conflitos. Contudo, após a Primeira Guerra Mundial, tornou-se freqüente recorrer a esse instrumento jurídico para regular, de modo completo, a situação da Igreja e de seus entes num país determinado. A época áurea das concordatas foi o intervalo entre as duas guerras, mais especificamente, o pontificado de Pio XII, quando tais pactos foram concluídos não apenas com Estados de maioria católica, mas também com outros de maioria protestante ou ortodoxa. Após a Segunda Guerra Mundial e especialmente após o Concílio Vaticano II, passou-se com maior freqüência a assinatura de acordos parciais, que já não recebiam a denominação de concordata. Não se abandonou, porém, inteiramente a praxe anterior; tanto é assim que em 2008 foi assinada uma concordata com o Principado de Andorra.

No caso do Brasil, o acordo não regulamenta todas as matérias possíveis no relacionamento Igreja-Estado e não foi assinado para terminar qualquer conflito ou diferença existente. Talvez essa seja a razão de não ser chamado de concordata. Seguindo as normas do Direito Internacional Público, pode-se dizer que esse acordo ainda não se encontra em vigor, pois, para tanto, deverá ser ratificado pelo Congresso Nacional2.

Contra o que muitos pensam, não se trata de um acordo entre o Brasil e “o Vaticano”, mas entre o Brasil e a Santa Sé. O Vaticano é um Estado, com uma jurisdição extremamente limitada3, enquanto a Santa Sé é a estrutura jurídica representativa da Igreja Católica em nível mundial4. Não se esqueça que a Santa Sé é reconhecida universalmente como sujeito doPage 235Direito Internacional Público5. Tal princípio é reafirmado no preâmbulo do Acordo: “Afirmando que as Altas Partes Contratantes são, cada uma na própria ordem, autônomas, independentes e soberanas e cooperam para a construção de uma sociedade mais justa, pacífica e fraterna...”

Que se trata da Santa Sé e não do Vaticano fica também claro no mesmo preâmbulo, onde podemos ler: “Considerando que a Santa Sé é a suprema autoridade da Igreja Católica, regida pelo Direito Canônico...” Embora seja possível chegar a acordos entre o Brasil e outras Igrejas ou Confissões religiosas, eles seriam de natureza jurídica diferente, pois as outras confissões não possuem a personalidade jurídica internacional, que é conatural à Santa Sé.

Examinando agora o nosso acordo, devemos dizer que, a rigor, não representa nenhuma novidade. Na realidade, trata-se antes de uma consolidação de normas já existentes, embora nem sempre suficientemente explícitas. Vejamos, pois, as matérias incluídas no acordo e sua correspondência na legislação em vigor.

Os dois primeiros artigos do acordo6 são apenas o enunciado de um fato – as relações diplomáticas existentes – e de um princípio – a liberdade religiosa –, pacificamente admitidos por todos.

O artigo terceiro7, que trata da personalidade jurídica dos entes eclesiásticos, interpreta largamente o disposto no já citado Decreto 119A, de 1890. A...

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