A relativização do princípio da legalidade frente ao princípio da proteção à confiança

AutorCamila Minella Dipp
CargoTrabalho apresentado originalmente como monografia à banca examinadora como requisito à obtenção do grau de Bacharel em Direito na Faculdade de Direito da Escola Superior do Ministério Público
Páginas165-196
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Revista da Faculdade de Direito da FMP – nº 9, 2014, p. 165-196
A RELATIVIZAÇÃO DO PRINCÍPIO DA LEGALIDADE FRENTE AO
PRINCÍPIO DA PROTEÇÃO À CONFIANÇA
Camila Minella Dipp*1
RESUMO: O presente artigo apresenta-se através dos princípios da legalidade e da proteção à
conança, tendo como objetivo inferir a possibilidade de relativização do já consolidado princípio
da legalidade em prol do reconhecimento e incidência do princípio da proteção à conança. Para
tanto, partir-se-á, em um primeiro momento, para a abordagem conceitual dos princípios sob aná-
lise; e, por m, será discorrido especicamente sobre a aplicação e cotejo destes no ordenamento
jurídico brasileiro vigente, voltado para o entendimento do Supremo Tribunal Federal. Assim, será
demonstrada a possibilidade de harmonização das suas aplicações, através da relativização e pon-
deração de princípios, a m de garantir e efetivar os ideais ostentadores da concepção de Estado
Democrático de Direito.
Palavras-chave: Princípio da legalidade. Princípio da segurança jurídica. Princípio da proteção à
conança. Ponderação. Relativização.
ABSTRACT: This article is presented through the principles of legality and protection of conden-
ce, aiming to infer the possibility of relativizing the already established principle of legality in favor
of recognition and incidence of the principle of protection of condence. To do so, it starts with an
overview it approaches the conceptual part of the principles under review; and, lastly, it discourses
specically about the applying and the confrontation of them in current brazilian law, facing the un-
derstanding of the Supreme Court. Thus, it will be demonstrated the possibility to harmonize their
applications through relativization and weighting in order to ensure and actualize the ostentatious
ideals of the Democratic State of Law.
Keywords: Principle of legality. Principle of legal security. Principle of protection of condence. Wei-
ghting. Relativizing.
SUMÁRIO: Introdução. 1. Legalidade, segurança jurídica, proteção à conança e boa-fé. 2.1
As diversas compreensões sobre o princípio da legalidade. 2.2 Critérios distintivos entre segurança
jurídica, proteção à conança e boa-fé. 2. A relativização do princípio da legalidade frente ao
princípio da proteção à conança. 2.1 Posição doutrinária. 2.2 Reconhecimento jurisprudencial: o
entendimento do Supremo Tribunal Federal. Considerações Finais.
*1Trabalho apresentado originalmente como monograa à banca examinadora como requisito à
obtenção do grau de Bacharel em Direito na Faculdade de Direito da Escola Superior do Ministério
Público. Orientação: Profa. Dra. Maren Guimarães Taborda. Camila Dipp é, atualmente, advogada.
Cânones de interpretação no desempenho de função argumentativa (CANOTILHO, José Joaquim
Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7. ed. Portugal: Livraria Almedina, 2003. p.
1.161)
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Introdução
O presente trabalho visa realizar uma análise acerca dos princípios da
legalidade e da proteção à conança, basilares do Estado Democrático de Di-
reito, no marco da teoria dos princípios, nas situações em que é exigida a rela-
tivização do primeiro, frente à necessidade mais imperiosa de concretização do
segundo. Considerando que existe uma distinção entre os princípios jurídicos
dos princípios hermenêuticos, tratar-se-á, aqui, dos princípios na qualidade de
norma jurídica1,2,3, consequência da sua constitucionalização, que não só os
consagrou como norma, superando a crença de que teriam uma dimensão tão
somente axiológica4, mas também permitiu que adquirissem “a superioridade
própria do instrumento que os alberga atualmente – ou seja, o status constitu-
cional”.5
A Constituição, sendo o sistema aberto e dialético de princípios e regras
que é, permite eventuais tensões ou antagonismos entre seus princípios nor-
mativos, visto que são resultados de diversas aspirações sociais e de diferentes
pontos de vista valorativos, por vezes até contraditórios, podendo-se armar,
portanto, que a colisão entre princípios faz parte da lógica do sistema. Assim,
caberá ao intérprete, diante das circunstâncias fáticas e jurídicas do caso con-
creto, defrontar tais antagonismos atribuindo peso aos diferentes pontos de vis-
1 Substitui-se aqui a distinção tradicional de normas e princípios para abordar a distinção
de regras e princípios, sendo ambos, portanto, espécies de normas. Assim, não há de falar em
hierarquia entre princípios e regras, integrando, conjuntamente, o sistema referencial do intérprete.
Trata-se aqui, ainda, da principal crítica de Dworkin ao Positivismo Jurídico, compreendido a
partir da versão de Hart, vez que este toma o direito somente a partir das regras (BARROSO,
Luís Roberto; BARCELLOS, Ana Paula de. A nova interpretação constitucional dos princípios. In:
LEITE, George Salomão (Org.). Dos princípios constitucionais: considerações em torno das normas
principiológicas da constituição. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 111; CANOTILHO, 2003, p. 1.160;
e WALDMAN, Ricardo Libel. A teoria dos princípios de Ronald Dworkin. In: TABORDA, Maren
Guimarães; MELGARÉ, Plínio Saraiva (Orgs.). Programa de hermenêutica jurídica: estudos em
homenagem a Sandro Subtil da Silva. Porto Alegre: Edipucrs, 2011. p. 191-192).
2 Entende-se norma jurídica como “os sentidos construídos a partir da interpretação sistemática
de textos normativos”, não havendo de falar, portanto, em correspondência entre dispositivo e norma
(tal fato nota-se em casos nos quais há norma sem dispositivo, bem como quando há dispositivo sem
norma). Necessário, assim, que seja abandonada a convicção de que a realização de descrições
é a mera função do intérprete, bem como de que o ponto de partida para a interpretação é do
dispositivo. O intérprete deve estar atento aos ns, aos valores e aos bens jurídicos essenciais
estabelecidos pelo ordenamento jurídico, a serem preservados e realizados, interpretando os
dispositivos constitucionais de modo a explicitar suas versões de signicado de acordo a linguagem
constitucional (ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da denição à aplicação dos princípios
jurídicos. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 30 e 34-35).
3 CANOTILHO, 2003, p. 1.161.
4 BARROSO; BARCELLOS, 2003, p. 108.
5 TAVARES, 2003, p. 25.
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ta valorativos.6 Pois bem, esse parece ser o caso do princípio da legalidade
– regra de ouro para a Administração Pública – quando entra em rota de colisão
com a segurança jurídica, ou mesmo com o princípio da proteção à conança.
Na medida em que só pode ser decidido no caso concreto qual princípio é devi-
do aplicar, sempre vale a pena investigar o estado atual da discussão (estado da
arte), tal como posto na doutrina e na jurisprudência do STF, o tribunal “guardião
da Constituição”.
Para tanto, faz-se, à guisa de premissa, uma tomada de posição diante
da distinção entre o princípio da legalidade, da segurança jurídica, da proteção
à conança e da boa-fé (1), para só então tratar da relativização do princípio da
legalidade frente ao princípio da proteção à conança, como feito pela doutrina
e pelos tribunais brasileiros (2). As conclusões parciais vão sendo xadas ao
longo do texto e, ao nal, estão arroladas as mais relevantes.
1. Legalidade, segurança jurídica, proteção à conança e boa-fé
O princípio da legalidade será exposto em suas noções de compatibili-
dade e conformidade no ordenamento jurídico, partindo dos estudos desenvol-
vidos por Charles Eisenmann7 no século XX. O princípio da proteção à con-
ança, por sua vez, será analisado em sua concepção através do princípio da
segurança jurídica em seu aspecto subjetivo e da boa-fé, tendo como base os
estudos introduzidos no Brasil por Almiro do Couto e Silva.
1.1 As diversas compreensões sobre o princípio da legalidade
A concepção originária e restritiva do princípio da legalidade8 está vincu-
lada à separação dos Poderes e às ideias oposicionistas do absolutismo. Pres-
supõe a obediência da Administração somente às leis9, estabelecendo uma
6 ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da
fundamentação jurídica. 2. ed. São Paulo: Landy Editora, 2005. p. 42; BARROSO; BARCELLOS,
2003, p. 113; e CANOTILHO, 2003, p. 1.182.
7 Charles Eisenmann discorre acerca do tema a partir do modelo francês, que, por sua vez,
serviu de modelo para o Brasil, razão pela qual aplicável ao presente trabalho.
8 Adotada por Charles Eisenmann por dois motivos: ser a fundamentadora da luta do princípio
da legalidade pelos liberais, no século XIX, na Europa; e por entender ser impossível incluir todas
as espécies de normas pretendidas pelas demais concepções (Cf. EISENMANN, Charles. O direito
administrativo e o princípio da legalidade. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 56,
p. 50-53, 1959).
9 “Norma resultante da vontade geral do povo e que também iria regrar e disciplinar as relações
entre os indivíduos e as relações dos indivíduos com o Estado” (cf. COUTO E SILVA, Almiro.
Princípios da legalidade da administração pública e da segurança jurídica no estado de direito
contemporâneo. Revista de Direito Público. São Paulo, n. 84, p. 49, out. 1987).
A relativização do princípio da legalidade frente ao princípio da proteção à conança

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