Relações Trabalhistas e Comércio Internacional: Os Paraísos Normativos na Era do Race to the Bottom

AutorHumberto Lima de Lucena Filho
Ocupação do AutorDoutor em Ciências Jurídicas (Universidade Federal da Paraíba)
Páginas70-119

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A era globalizante — ou mundializadora, como preferem os franceses — trouxe consigo pressupostos paradigmáticos na (re) deinição do conceito de Estado, de relações comerciais e de aplicabilidade de normas jurídicas. Os clássicos e os consolidados delineamentos dispensados à forma como os sujeitos desempenham suas atividades no cenário mercadológico cederam espaço a uma nova roupagem de interpretação e de compreensão das intrínsecas conexões entre Direito, Economia, Comércio Internacional e Trabalho127.

As fronteiras nacionais (que antes operavam como empecilhos mais consistentes à troca de informações, à circulação de pessoas, aos serviços e às mercadorias) encerram limites bem mais elásticos. As noções de territorialidade, de juridicidade, de cidadania global e de direitos fundamentais foram inluenciadas pelos inexoráveis inluxos da atividade econômica entre corporações, Estados e pessoas na ordem internacional. Discute-se uma transjuridicidade aplicável à cidadania irradiante para além dos limites geográicos previamente estabelecidos: a cidadania transterritorial.

Os elevados índices de complexidade carreados pelas relações intersubjetivas concretizadas na nova ordem mundial materializam-se em novos desaios ao Direito, na regulamentação de condutas ou na resolução dos litígios que lhe são submetidos. As vias dos ordenamentos jurídicos com validade estritamente nacionais aparentam insuiciência de efetividade na consecução de impasses que perpassam as ordens jurídicas internas, notadamente quando se tratam de questões cujo objeto tangencie colisões entre direitos humanos (ou direitos fundamentais aplicáveis às pessoas morais) e o poder estatal exposto através de suas limitações.

Sem obliterar os imbricados e multidisciplinares imbróglios típicos de uma sociedade multicêntrica, tem-se como consequência do acompanhamento do Direito aos fatos socioeconômicos e políticos, o conceito de normas jurídicas em rede, transconstitucionais e dialógicas. Em outro dizer, são tidas como válidas e capazes para atuar como fonte de

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direito, sobretudo na construção da fundamentação resolutória dos casos concretos de outras ordens jurídicas, que não estatais, seja de organização internacional, supranacional, extraestatal, protagonizadas por atores distintos e que se conectam constantemente. Essa lógica não se norteia pela sobreposição de regras, mas por pontos de contatos mínimos, ansiando uma gramática básica de direitos e possibilidades de trocas interpretativas e integradoras. A isto se denomina transconstitucionalismo, interconstitucionalidade, normas constitucionais em rede, constitucionalismo multilevel ou constitucionalismo global, a depender da origem doutrinária e do campo de incidência das referidas regras.

Os modelos contemporâneos de comercialização de produtos e serviços pressupõem complexidades nem sempre adstritas à esfera empresarial ou jurídica. As análises dos fenômenos socioeconômicos presentes na sociedade global demandam — tal qual a diversidade de suas estruturas — exames mais transdisciplinares e menos deterministas do ponto de vista normativo. Estudos que se encarregam de perscrutar realidades especíicas, sob uma ótica empírica, cujos benefícios e contribuições ao mundo do Direito, tradicionalmente subvalorizados, ganham espaço no mundo acadêmico. Nota-se um aumento do diálogo, entre fontes do Direito, de Erik Jayme128, ou das inluências de um subsistema normativo sobre outro, a exemplo do caráter econômico das regras trabalhistas e as repercussões, no âmbito laboral, das redes de normatividade empresarial.

Veriica-se a necessidade do proissional que lida com a interpretação, a integração e a aplicação das regras jurídicas fazer uso de estudos de áreas diversas, sensíveis e comunicativas com o Direito (Ciências Sociais, Filosoia e Economia, por exemplo) para a fundamentação mais acurada de suas decisões ou o exercício do direito petitório. Dentre as três ciências esposadas como auxiliares ao estudo do Direito, a Economia tem uma função singular, dado o contexto histórico em que se vive.

A Economia proporciona uma visão mais concreta de problemas aparentemente abstratos e coopera com a tomada de decisões que visem menor grau de erro e máximo de eiciência. A busca um Judiciário eiciente em suas decisões deve considerar os raciocínios do Law and Economics ao mundo das relações de trabalho e suas consequências nas decisões judiciais129. O valor inal dos produtos e dos serviços carrega consigo os custos da tributação, dos encargos sociais decorrentes da força de trabalho, o ambiente de concorrência (des) leal pode ser determinado e afetado pelo descumprimento massivo das regras iscais e trabalhistas. O trabalho, o mercado e a concorrência são temas suprajurídicos, integrantes dos processos de trade-of, a serem analisados pela perspectiva do Direito Econômico ou pela AED com modelagem na Microeconomia.

Em termos Luhmannianos, o sistema econômico é um sistema dotado de um código

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binário ‘ter/não ter’, o político se orienta pelo ‘poder/não poder’ e o jurídico guia-se pelo lícito/ilícito130. No sistema econômico está o subsistema corporativo-empresarial, cuja função e inalidade precípua é promover a circulação de bens e de serviços por intermédio de uma produção organizada. O sistema jurídico abriga dois subsistemas particulares: o trabalhista, responsável por promover um standard de condições mínimas laborais; o econômico, constituíd de eixos principiológicos “(...) de conformação do processo econômico, desde uma visão macrojurídica, conformação que se opera mediante o condicionamento da atividade econômica a determinados ins políticos do Estado”131.Embora autônomos, em nome da heterorreferência típica da teoria dos sistemas, há troca de agastamentos entre eles, de modo que a prevalência de um sobre o outro implica a submissão do Direito à Economia e vice-versa e a perda da própria lógica dos elementos que acoplam tais estruturas e permitem as pontes de transição.

A delimitação do debate presume a existência de um fenômeno jurídico-econômico especíico, que abrange tópicos referentes ao Direito do Trabalho (subsistema laboral), no campo da transterritorialidade das atividades dos conglomerados corporativos (subsistema empresarial), sob o enfoque da proteção dos direitos sociais trabalhistas desde o método da transjuridicidade. Dado o surgimento de controvérsias que se iniciam no ambiente local, mas repercutem policentricamente na sociedade global, é possível combater a dilapidação de garantias mínimas trabalhistas em Estados com normatização precária por intermédio da internacionalização do direito do trabalho?

O Direito tem buscado combater a retirada de divisas inanceiras, a título de evitar ilícitos como a lavagem de capitais, a evasão iscal e toda sorte de crimes contra o sistema inanceiro. Para tanto, a expressão Paraíso Fiscal tem sido didaticamente utilizada para deinir as ordens jurídicas tributárias que se enquadram como regime iscal privilegiado132, nos termos do art. 24-A, da Lei n. 9.430, de 27 de dezembro de 1996133. Empresta-se a locução ao presente contexto, com a respectiva adaptação, no intuito de se estudar como promover a tutela dos direitos trabalhistas de empregados contratados por agentes transnacionais nos Paraísos Normativos134.

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As notícias de pulverização produtiva para locais de baixo custo social e dos crescentes protestos por motivos distintos, feito por organizações de trabalhadores tanto dos países reputados como desenvolvidos como pelos ditos periféricos justiicam a análise dos fenômenos que relacionam trabalho e competitividade empresarial. A relação dialógica pode cooperar para o melhoramento das legislações frágeis, seja por intermédio dos instrumentos jurídicos disponibilizados pela OMC, OIT ou pela atuação conjunta dos respectivos órgãos, aliada a utilização do direito nacional.

Na primeira seção, serão tracejados alguns aspectos introdutórios sobre o comércio e a corrida internacional dos mercados e sua relação com o mundo do trabalho; o segundo tópico encarregar-se-á do estudo da constituição da OIT, de seu papel e do fenômeno da internacionalização dos standards laborais como mecanismo para propiciar um comércio internacional equitativo, bem como da existência de garantias trabalhistas que envolvam a atuação da OMC nos tratados multilaterais de comércio internacional; a terceira tratará o papel dialógico de transjuridicidade entre a OIT e a OMC na proteção aos direitos trabalhistas e o enfrentamento de problemas que tangenciem a igura dos Paraísos Normativos. Por último, a proposta da liberdade como elemento de ponderação entre a soberania estatal e a necessidade de resguardo dos direitos trabalhistas.

2.1. Globalização, comércio internacional e trabalho

A transição histórica das sociedades primitivas até a época pós-moderna signiicou uma mudança de perspectiva dos modos de produção e de tratamento geográico das interações humanas. O advento de períodos intermediários, como o medieval feudalista, juntamente com o desenvolvimento de técnicas agrícolas, o aumento da produção, o desenvolvimento das cidades e a consolidação de uma classe burguesa foram fundamentais para a preparação de um ambiente institucional e econômico propício ao surgimento de um estilo comerciário que prestigia a busca de lucros e o acúmulo de capital135.

Da antiguidade até os séculos XIV e XV há um descompasso entre a capacidade de produção e de consumo, resultando em baixa produtividade e falta de alimento para abastecer os núcleos urbanos. Era premente a necessidade de ampliação dos mercados fornecedores de gêneros alimentícios em troca de...

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