Relações de exploração do trabalho

AutorIvan Alemão
Ocupação do AutorDoutor em Sociologia pelo PPGSA da Universidade Federal do Rio de Janeiro (2008)
Páginas129-137

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O JURÍDICO NAS RELAÇÕES DE TRABALHO – Os mecanismos de dominação do empregador por meio da autotutela 103

1. A fórmula “primeiro trabalho, depois salário”

Os contratos de trabalho, desde seu nascimento histórico, são regidos da seguinte forma: primeiro o trabalhador presta o serviço, depois, geralmente no inal do mês, recebe o salário. Essa fórmula, que pode ser resumida em primeiro trabalho, depois salário, já foi apontada por Marx, em O Capital104. Assim, é exposta a importância de o trabalho ser pago após a prestação dos serviços do trabalhador, muito embora Marx não tenha procurado desenvolver como essa relação se dava juridicamente. No entanto, para que essa fórmula tenha legitimidade na sociedade, a sua regulamentação legal foi importante. O próprio prolongamento histórico do capitalismo, para além do que Marx esperava, foi possível, em parte, por essa legitimidade da exploração, com o surgimento das leis trabalhistas. Se as normas jurídicas de proteção do trabalhador que foram surgindo, aliviavam a exploração do trabalhador, por outro lado, essa relação foi sendo legitimada socialmente. O capitalismo foi icando mais humano sem alterar sua essência.

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A fórmula primeiro trabalho, depois salário, em seu âmbito mais jurídico, coloca o trabalhador na condição de credor e o empregador na condição de devedor. Após o empregado ter cumprido sua obrigação no contrato (de prestar serviço), aguarda o empregador cumprir a sua (pagar o salário).

Mas a fórmula, vista por este ângulo jurídico, revela diferenças em relação à visão econômica. Nesta é imprescindível que o trabalhador produtivo preste o serviço “antes” do pagamento, pois, caso contrário, em tese, não haveria de onde sair o dinheiro para o salário ou ele não teria direito de recebê-lo. O capital, no entanto, possui uma folga possível de ceder certos direitos ou até renunciar à formula inicial até certo limite105. No âmbito da lógica jurídica, por sua vez, é indiferente o pagamento ser feito antes ou depois da jornada de tra-balho, desde que se cumpra o que foi pactuado. No entanto, para responder à exploração econômica, a lei estabeleceu a regra geral de que o pagamento é feito depois do trabalho, ressalvando, porém, a possibilidade de ser pactuado o contrário106. O que ocorre na prática é que os empregadores acabam utilizando a regra geral, mas a lei oferece a outra possibili-dade sem ferir a lógica jurídica.

Dessa forma, o que se convencionou chamar de “adiantamento” de salário pode não ser uma verdadeira antecipação. Pelo ângulo jurídico, quando o empregador “adianta” parte do salário no meio do mês, ele está renunciando ao seu direito de pagar a dívida no inal do mês. Esse nobre ato é interpretado como uma liberalidade do patrão, por ele ter renunciado ao seu direito de aguardar até o inal do mês. Já no âmbito econômico, podemos airmar que essa antecipação salarial já é parte do pagamento de trabalho prestado, pelo menos o efetuado até o meio do mês.

O prazo do empregador para pagar o salário pode ir até dias depois de o empregado já ter cumprido a sua obrigação. Atualmente, no Brasil, o empregador goza do direito de pagar sua dívida até cinco dias úteis depois de o seu empregado já ter trabalhado durante o mês. O empregado por ter cumprido sua obrigação mensal, adquire o direito ao salário, mas ainda não adquire direito a receber o salário. Esses cinco dias úteis correspondem à tolerância que a lei concedeu ao empregador, estendendo-lhe o prazo. Embora já exista o incontestável atraso pelo ângulo econômico, o mesmo não ocorre pelo ângulo jurídico. Esse prazo de tolerância é uma ilustração do abuso da dominação e seu requinte, e de como a sociedade o aceita com naturalidade. Ele não é, no entanto, fundamental, pois se a lei exigisse o pagamento do salário no inal do mês a fórmula continuaria.

A dificuldade de se inverter a fórmula, para que o trabalhador receba antes de prestar o trabalho, como dissemos, concentra-se no fato de a mais-valia depender do resultado do trabalho (o produto ou o serviço), completando todo o ciclo de exploração. Não podemos

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esquecer que o salário é uma parte do que o trabalhador produziu. Em outras palavras, se o trabalhador receber o salário e não trabalhar, não existe a mais-valia. A obrigação de o empregador pagar salário de quem não trabalhou por longo tempo, como no caso de doença, só foi possível com o sistema securitário. Neste caso há uma espécie de repasses e compensações de mais--valia, mas esse não é o aspecto mais importante para onde queremos chegar neste artigo107.

A pergunta que agora fazemos é se a fórmula primeiro trabalho, depois salário, no campo jurídico, serve apenas como um legitimador da relação de exploração econômica. Acredito que não. Ela tem uma importante função na relação de dominação108. Se na relação jurídica o tempo decorrido entre a realização do trabalho e o pagamento do salário não importa, podendo até ser pactuada de forma contrária, por que então, invariavelmente, os empregadores insistem em pagar o salário após a prestação dos serviços? Seria apenas uma questão econômica da exploração do trabalho? Achamos que não. Prova disso é que os trabalhadores do setor público que têm seus salários garantidos pelo orçamento do Estado ou os trabalhadores domésticos, também recebem seus salários efetivamente no inal do mês. Os salários desses trabalhadores, considerados por Marx como improdutivos, não dependem da produção ou de resultados positivos ou lucrativos.

Se até então ainda não tínhamos feito, pelo menos de forma enfática, a distinção entre exploração econômica e dominação jurídica, agora não podemos fugir a ela. Se na época de Marx a exploração econômica era mais evidente, nos tempos atuais as relações de dominação estão aperfeiçoadas e dão legitimidade àquela. Mas, a dominação jurídica não é uma mera consequência da exploração econômica, pois ela sempre existiu, antes mesmo do capital, e se estende para os sentimentos mais remotos dos homens.

É interessante lembrar um fato curioso. Qualquer pessoa tende a querer ser “credor” e não “devedor”, até porque o credor é considerado, no direito comum, como parte forte na relação contratual. Credor, em princípio, é a parte forte no contrato. Existem até mesmo normas de proteção do devedor por ser ele considerado fraco na relação jurídica, como o princípio segundo o qual, em caso de dúvida, prevalece o seu argumento. No entanto, os empregadores se sentem mais confortáveis no papel de devedores. Essa é uma pista de nossa investigação.

As explicações para o fenômeno de o empregador, mesmo sendo mais forte que o seu empregado, se sentir bem na condição de devedor pode ter muitas justificações, porém uma deve ser destacada. Neste caso, a explicação econômica não é suiciente. Se dissermos que é melhor...

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