Direitos fundamentais no Reino Unido: Um estudo do Human Rights Act

AutorDaniel Martins Felzemburg
Páginas217-242

Daniel Martins Felzemburg. Advogado. Mestrando em Direito das Relações Internacionais pelo UNICEUB. Especialista em Direito Processual Civil pelas Faculdades Jorge Amado, Salvador-BA. Sócio efetivo da Academia Brasileira de Direito Processual Civil. E-mail: danifelze@hotmail.com.

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Introdução

A presente exposição pretende fazer uma análise dogmática dos direitos fundamentais no Reino Unido após a implementação e vigência do Human Rights Act em outubro de 2000. Diploma normativo relativamente novo, o Human Rights Act tem suscitado interesse na comunidade jurídica, assim como “intensa é a polêmica que provocou, polêmica evidentemente ainda em curso.”1

Para atingir o escopo deste trabalho, far-se-á uma abordagem sobre o impacto do Human Rights Act perante o Monarca, o Parlamento, e o Judiciário britânico. Será dedicado, ainda, um capítulo específico para análise da eficácia dos direitos fundamentais no Reino Unido diante do referido diploma legal.

Não se pretende, aqui, exaurir o estudo sobre o Human Rights Act, visto que estaríamos fugindo do objetivo da presente exposição. No entanto, espera-se dar uma modesta contribuição para um tema tão importante e em destaque atualmente no cenário internacional.

O Human Rights Act

Antes de tudo, é importante fazer um curto esboço sobre o Human Rights Act, especialmente sobre a sua origem e natureza jurídica.

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Origem

Segundo leciona Dawn Oliver,2 o Human Rights Act foi uma das primeiras Cartas a ser introduzida na Casa dos Comuns após as eleições gerais de 1997, passando a vigorar no Reino Unido a partir de outubro de 2000. Mas a causa de sua criação remonta a tempos muito mais antigos. Isto porque o que fez o Human Rights Act foi incorporar à lei interna do Reino Unido as principais cláusulas da Convenção Européia de Direitos Humanos (“European Convention on Human Rights”), instrumento internacional que foi adotado por muitas democracias do oeste europeu a partir de 1950.

A Convenção Européia de Direitos Humanos foi ratificada pelo Reino Unido em 1951, vigorando internacionalmente em 1953. Os britânicos exerceram um papel importante na criação da Convenção Européia, já que naquela época o objetivo era prevenir uma nova onda de abusos aos direitos civis e políticos que aconteceram antes e durante a Segunda Guerra Mundial sob os regimes nazistas e fascistas, além de prevenir a expansão do comunismo e autoritarismo do bloco soviético.3

Não obstante, as normas da Convenção Européia não podiam ser invocadas perante as cortes britânicas até que fossem incorporadas numa lei interna. E o direito individual de petição à Corte Européia de Direitos Humanos em Estrasburgo, previsto na Convenção Européia, foi fundamental para que o Reino Unido incorporasse tais normas ao direito interno através do Human Rights Act.

Com efeito, o direito individual de petição à Corte Européia de Direitos Humanos em Estrasburgo não foi inicialmente ratificado pelo Reino Unido, o que trazia como conseqüência o fato de que os casos envolvendo o Reino Unido somente poderiam ser levados àquela corte internacional através de outros países participantes.4

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Após o direito individual de petição ter sido aceito pelo governo do Reino Unido, muitos casos foram trazidos com êxito à Corte de Estrasburgo por vítimas das violações dos direitos da Convenção Européia.5

Dessa maneira, o fato de os direitos violados no Reino Unido só poderem ser protegidos perante a Corte de Estrasburgo, aliado ao alto índice de condenação do país nos casos levados naquela Corte, acabou por pressionar o governo a incorporar os direitos da Convenção Européia ao direito interno britânico.

Ademais, houve também uma pressão internacional decorrente do processo integrativo do Reino Unido à União Européia, que não poderia ficar “de fora” do bloco comunitário quanto à efetiva proteção dos direitos humanos tutelados pela Convenção Européia.

A adoção do Human Rights Act decorre do processo associativo que integrou a Grã Bretanha na União Européia. Havendo sido por ela subscrita a Convenção Européia dos Direitos do Homem de 1950, mas não tendo as normas desta sido incorporadas numa lei, não podiam elas ser invocadas em juízo contra um ato administrativo, o que constituía uma evidente aberração.6 Por fim, o fato de outros países de tradição do common law, como o Canadá e a Nova Zelândia, adotarem antes do Reino Unido a sua própria Carta de proteção dos direitos humanos,7 acabou por concretizar a edição do Human Rights Act na Grã Bretanha.

Assim, após sucessivas resistências do governo britânico sustentado pelos Liberais Democratas, em 1996, o Partido Trabalhista, apesar de estar na oposição, colocou em proposta a incorporação dos direitos da Convenção Européia para “[...] enable British people to enforce their rigths in UK courts and enable our own judges to apply the ECHR in their jurisdiction.”.8 Era o primeiro passo para criação do Human Rights Act.

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Natureza jurídica

Manoel Gonçalves Ferreira Filho entende que a natureza jurídica do Human Rights Act é híbrida, pois, para o referido professor,

É lei interna, na sua parte ‘procedimental’, a que disciplina a declaração de compatibilidade, a declaração de incompatibilidade, e os efeitos das mesmas. É, todavia, norma internacional na sua parte substancial, desempenhando a função de introduzir no plano interno normas oriundas de um Pacto, ato convencional de direito internacional. Note-se que estas normas não se tornam pela incorporação regras internas, exceto quanto à sua aplicabilidade (quando não em choque com regra legal britânica), pois a elas falta o poder de derrogar o direito interno pré-existente.9

De fato, o Human Rights Act possui uma parte procedimental, com regras próprias que somente podem ser aplicadas dentro do Reino Unido. As mais importantes normas procedimentais serão estudadas no decorrer do presente artigo.

Mas o que mais importa no Human Rights Act é a sua parte substancial, a razão pela qual ele foi concebido, que foi a incorporação à lei interna do Reino Unido das principais cláusulas da Convenção Européia de Direitos Humanos, dando uma especial proteção legal a certos direitos civis e políticos. Não é por acaso que consta o seguinte no preâmbulo do Human Rights Act:

Um Ato para dar eficácia aos direitos e liberdades garantidas sob a Convenção Européia de Direitos Humanos; para fazer previsões a respeito de certos órgãos judiciais que serão juízes da Corte Européia de Direitos Humanos; e para assuntos conexos.10

A incorporação das principais cláusulas da Convenção Européia de Direitos Humanos através do Human Rights Act se fazia necessária, na medida em que o Reino Unido adota um sistema dualista, ou seja, “[...] as fontes e normas do direito internacional não têmPage 221 influência nenhuma sobre questões de direito interno, assim como as normas de direito interno não influenciam questões de ordem externa.”.11

Portanto, era necessária a incorporação das normas da Convenção Européia através do Human Rights Act a fim de que ganhassem vigência dentro do território do Reino Unido.

E os principais direitos da Convenção Européia incorporados pelo Human Rights Act foram o direito à vida (art. 2º), a proibição de tortura (art. 3º), a proibição da escravidão e do trabalho forçado (art. 4º), a liberdade e segurança (art. 5º), a um julgamento equânime (art. 6º), a legalidade criminal (art. 7º), o direito a privacidade (art. 8º), a liberdade de pensamento, consciência e religião (art. 9º), a liberdade de expressão (art. 10º), a liberdade de reunião e o direito de associação (art. 11º), direito ao matrimônio (art. 12º), a proibição de discriminação (art. 14º), a proteção da propriedade privada (art. 1º do Primeiro Protocolo), direito a educação (art. 2º do Primeiro Protocolo), direito à livre eleições (art. 3º do Primeiro Protocolo), e à abolição da pena de morte, salvo em tempos de guerra (arts. 1º e 2º do Sexto Protocolo).

Com a expressa previsão de tais direitos no Human Rights Act, o Reino Unido acabou por consagrar os direitos fundamentais em seu ordenamento jurídico.12 Apesar disso, as normas do Human Rights Act não são hierarquicamente superiores do que as leis do Parlamento. Ao revés, no conflito entre elas, prevalece à norma interna. É a supremacia do direito interno britânico sobre o direito internacional, que será abordada com mais profundidade nos capítulos seguintes.

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Direitos fundamentais e o monarca

O sistema de governo do Reino Unido é monarquia constitucional13 parlamentarista. Nesse sistema, o Executivo possui estrutura dualista, ou seja, o rei “[...] é o chefe de Estado, com funções de representação, de cerimonial e de conselho, enquanto o governo é exercido por um órgão coletivo, o conselho de ministros ou gabinete.”.14

No presente capítulo, contudo, somente falaremos sobre a figura do Chefe do Estado, do Monarca, frente ao Human Rights Act. Isto porque o capítulo seguinte será dedicado à análise do Parlamento britânico, que também exerce funções executivas nesse sistema.

Ademais, há que se tomar com ressalvas a assertiva de que o Monarca do Reino Unido exerce apenas funções de Chefe de Estado. É sabido que uma mentira contada diversas vezes acaba virando verdade. Talvez esse ditado se aplique ao velho jargão de que “a Rainha reina, mas não governa”.15

Em...

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