A reincidência no sistema jurídico

AutorRocco Antonio Rangel Rosso Nelson
CargoMestre em direito da UFRN
Páginas118-124

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O aumento da sanção penal quando da repetição de conduta criminosa não se justifica nos dias atuais. O que se busca é o descarceramento

O télos da reincidência encontra-se na frustração da finalidade retributiva da pena, isto é, a primeira reprimenda não fora suficiente para coibir o condenado de voltar a delinquir, daí vindo a necessidade da segunda penalidade ser mais rigorosa, posto a insuficiência da primeira pena1. Em resumo: a razão de ser da reincidência é o agravamento da pena em face da opção do indivíduo em continuar a perpetrar condutas tidas por criminosas.

Detalhe significativo é que a espécie de pena imposta no crime anterior não acarreta nenhum tipo de afetação para fins de reincidência, ou seja, é indiferente se ao crime anterior fora aplicada pena privativa de liberdade, pena restritiva de direito ou multa2.

O Supremo Tribunal Federal (STF) entendeu pela recepção da reincidência, em face da Constituição Federal de 1988, já que não haveria mácula do referido instituto aos princípios de vedação do bis in idem3, da proporcionalidade4, nem da individualização da pena, porquanto não haveria uma duplicidade de punição por não se estar a ponderar delitos anteriores, mas sim o atual. A reincidência estaria em sintonia com a individualização da pena ao aferir o perfil do condenado, o qual se distingue daquele que cometeu a primeira infração, tratando, assim, os desiguais de forma desigual, o que revela sintonia com dosagem da pena proporcional, como se vê abaixo:

É constitucional a aplicação da reincidência como agravante da pena em processos criminais (CP, artigo 61, I). Essa a conclusão do Plenário ao desprover recurso extraordinário em que alegado que o instituto configuraria bis in idem, bem como ofenderia os princípios da proporcionalidade e da individualização da pena. Registrou-se que as repercussões legais da reincidência seriam múltiplas, não restritas ao agravamento da pena. Nesse sentido, ela obstaculizaria:

  1. cumprimento de pena nos regimes semiaberto e aberto (CP, artigo 33, § 2º, b e c); b) substituição de pena privativa de liberdade por restritiva de direito ou multa (CP, artigos 44, II; e 60, § 2º); c) sursis (CP, artigo 77, I); d) diminuição de pena, reabilitação e prestação de fiança; e e) transação e sursis processual em juizados especiais (Lei 9.099/95, artigos 76, § 2º, I e 89). Além disso, a recidiva seria levada em conta para: a) deslinde do concurso de agravantes e atenuantes (CP, artigo 67); b) efeito de lapso temporal quanto ao livramento condicional (CP, artigo 83, I e II); c) interrupção da prescrição (CP, artigo 117, VI); e d) revogação de sursis e livramento condicional, a impossibilitar, em alguns casos, a diminuição da pena, a reabilitação e a prestação de fiança (CP, artigos 155, § 2º; 170; 171, § 1º; 95; e CPP, artigo 323, III). Consignou-se que a reincidência não contrariaria a individualização da pena. Ao contrário, levar-se-ia em conta, justamente, o perfil do condenado, ao distingui-lo daqueles que cometessem a primeira infração penal. Nesse sentido, lembrou-se que a Lei 11.343/2006 preceituaria como causa de diminuição de pena o fato de o agente ser primário e detentor de bons antecedentes (artigo 33, § 4º).

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Do mesmo modo, a recidiva seria considerada no cômputo do requisito objetivo para progressão de regime dos condenados por crime hediondo. Nesse aspecto, a lei exigiria o implemento de 2/5 da reprimenda, se primário o agente; e 3/5, se reincidente. O instituto impediria, também, o livramento condicional aos condenados por crime hediondo, tortura e tráfico ilícito de entorpecentes (CP, artigo 83, V). Figuraria, ainda, como agravante da contravenção penal prevista no artigo 25 do Decreto-Lei 3.688/41. Influiria na revogação do sursis processual e do livramento condicional, assim como na reabilitação (CP, artigos 81, I e § 1º; 86; 87 e 95).5O professor Rogério Sanches se posiciona fran-camente a favor da constitucionalidade do instituto da agravante da reincidência:

NA REALIDADE, A REINCIDÊNCIA DECORRE DE UM INTERESSE ESTATAL DE CLASSIFICAR AS PESSOAS EM "DISCIPLINADAS" E "INDISCIPLINADAS", E É ÓBVIO NÃO SER ESTA FUNÇÃO DO DIREITO PENAL GARANTIDOR

Primeiramente, porque quando o juiz considera a reincidência, não está utilizando propriamente o fato passado em desfavor do agente; o que justifica a agravante é o fato de o mesmo indivíduo ter novamente violado a ordem jurídica, a despeito de devidamente punido pela prática delitiva anterior. Logo, não se pode afirmar que há nova punição sobre o fato, mas, sim, que a reiteração na prática de condutas que atentam contra a regular convivência social sofre (e deve mesmo sofrer) reprimenda mais severa. Além disso, o Código Penal não traz patamares mínimo e máximo para as hipóteses em que o juiz considera a reincidência. Como se trata de circunstância agravante, deve o julgador, no exercício de seu prudente arbítrio, determinar o quantum da elevação da pena, sempre em obediência ao princípio da proporcionalidade.

Por fim, não se pode olvidar que a aplicação da agravante da reincidência atende ao princípio da individualização da pena, pois faz com que se puna com maior rigor um indivíduo costumeiro violador da ordem jurídica. Configuraria clara injustiça, por exemplo, apenar-se de forma idêntica um furtador primário e um contumaz ofensor ao patrimônio alheio.6Preferimos seguir o posicionamento dos professores Zaffaroni e Pierangeli, os quais entendem que o instituto da reincidência viola o sistema garantista de proteção do cidadão em face da mácula à coisa julgada e do non bis in idem7, devendo ser expurgado do sistema penal brasileiro:

Rejeitada, portanto, esta única tentativa teórica de fundamentar a agravação da pena pela reincidência, sem violar o non bis in idem e a consequente intangibilidade da coisa julgada, estabelece-se o corolário lógico de que a agravação pela reincidência não é compatível com os princípios de um direito penal de garantias, e a sua constitucionalidade é sumamente discutível. Estas considerações são as que levaram o legislador colombiano, por exemplo, a eliminar a reincidência (...).

Na realidade, a reincidência decorre de um interesse estatal de classificar as pessoas em "disciplinadas" e "indisciplinadas", e é óbvio não ser esta função do direito penal garantidor8 9.

1. Da definição e dos requisitos da reincidência

O artigo 63 do Código Penal apresenta a definição da reincidência:

Artigo 63 - Verifica-se a reincidência quando o agente comete novo crime, depois de transitar em julgado a sentença que, no País ou no estrangeiro, o tenha condenado por crime anterior.

Deste conceito legal se extraem os pressupostos da reincidência: prática de um novo crime e já ter sido condenado anteriormente, com trânsito em julgado, por um outro delito (seja no Brasil ou exterior)10.

Algumas dúvidas devem estar no ar, de sorte ser fulcral saná-las. Primeiramente, só há reincidência quando um novo fato delitivo é perpetrado e ante-riormente já há uma condenação com trânsito em julgado. De tal maneira, não se pode falar em rein-cidência sem o trânsito em julgado da primeira infração. Se ocorrer o trânsito em julgado depois da data do cometimento do novo delito, não há reincidência; se na época da condenação do novo delito ocorrer o trânsito em julgado da primeira infração, não há reincidência; se o novo delito for cometido no dia do trânsito em julgado da primeira infração, não há reincidência (tem que ser posterior)11; diversos crimes cometidos julgados na mesma sentença, não há que se falar em reincidência. Perceba que o momento temporal é fundamental para poder configurar ou não a reincidência, de sorte que se torna imprescindível comprovar a data do trânsito em julgado e a data do novo delito.

Assim, caso a denúncia ou a queixa-crime não esteja subsidiada com lastro probatório capaz de evidenciar o momento exato do cometimento do novo crime, em obediência ao princípio in dubio

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pro reo, não se deve reconhecer a reincidência. É nesse sentido o julgado do Superior Tribunal de Justiça (stj):

Habeas corpus. Estupro consumado e tentado. Ausência de indicação da data exata do evento delituoso. Reincidência. Impossibilidade de aferição do momento do trânsito em julgado em relação ao delito ora analisado. Interpretação in dubio pro reo. Afastamento da agravante que se mostra devido. reincidência. Quantum do aumento. Desproporcionalidade. Fundamentação concreta. Necessidade. Constrangimento ilegal evidenciado.

  1. Na espécie, a denúncia não estabeleceu a data exata da prática do fato delituoso objeto do presente writ, tendo apenas afirmado que o evento teria ocorrido no ano de 2001, razão pela qual não há como precisar se a condenação sopesada para fins de reincidência, cujo trânsito em julgado é datado de 22/1/2001, teria transitado em julgado antes ou depois do cometimento do delito ora analisado.

  2. Não tendo o órgão ministerial declinado na denúncia a data em que o paciente teria praticado o crime de estupro consumado, afirmando apenas que constrangeu a vítima a com ele manter conjunção carnal no ano de 2001, há de ser dada a interpretação mais favorável ao acusado, em home-nagem ao princípio do in dubio pro reo, o que leva à conclusão de que não se poderia presumir que o trânsito em julgado da condenação sopesada para fins de reincidência necessariamente ocorreu antes do cometimento do delito que ora se analisa.

    [...]

  3. Ordem concedida para afastar a agravante da rein-cidência em relação ao delito de estupro consumado e, quanto ao crime de estupro...

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