A regulação judicial da autonomia privada

AutorRicardo Tavares de Albuquerque
Páginas340-364
340 • O Direito Civil nos Tribunais Superiores
A REGULAÇÃO JUDICIAL DA
AUTONOMIA PRIVADA
O CASO DAS FAC TOR IN GS E A
CLÁUSULA “PRO SOLVENDO”
Ricardo Tava res de Albuquerque1
Resumo: a autonomia da vontade, como se conhece na atualidade, é
uma herança do liberalismo. Especicamente, o lósofo Kant legou à
contemporaneidade o conceito de que autonomia é reger-se por suas
próprias leis morais. A tensão entre o capitalismo e os Estados Sociais,
sucessores do Estado Liberal, é marcada pelo intervencionismo, a variar
de grau de acordo com cada Estado nacional e o momento histórico. A
Constituição Federal de 1988 garante a autonomia, ou seja, a autorre-
gulação particular na ausência de normas reguladoras. Porém, mesmo
sendo esta a situação, o Superior Tribunal de Justiça tem julgado em
desfavor da cláusula que garante o direito de regresso no contrato de
factoring, o que acaba por regular judicialmente uma conduta e não por
uma lei em sentido formal ou norma advinda de órgãos regulatórios.
Além da falta de norma cogente, as normas obrigacionais permitem a
cláusula pro solvendo tanto na cessão de crédito quanto no endosso, as-
sim como as normas de validade, interpretação do negócio jurídico e
deveres contratuais anexos não permitem ao STJ ir além da vontade
declarada.
Palavras-chave: autonomia; intervenção estatal; contrato de factoring.
INTRODUÇÃO
O contrato de factoring, também denominado de faturização
ou fomento mercantil, é um negócio jurídico a envolver uma operação
de transferência de crédito entre empresários, por meio do instituto da
1
Professor de Direito Civil da Universidade do Estado do Amazonas. Doutorando
em Direito pela UFMG.
A regulação judicial da autonomia... • 341
cessão de crédito ou do endosso de título cambial. Neste negócio, o em-
presário faturizado busca um crédito por meio da transferência de um
crédito seu ao empresário faturizador, o qual adquire o crédito com um
deságio e, com isso, gera o seu lucro na cobrança dos direitos creditórios
adquiridos.
O fomento mercantil é um contrato atípico, ou seja, o seu con-
teúdo não é regulado em lei, o que permite a livre estipulação de cláu-
sulas, estando as partes apenas limitadas por normas gerais, conforme
disposição do artigo 425 do Código Civil.
Tal contrato é um importante meio de aquisição de crédito no
meio empresarial e a falta de regulação não pode ser tida como um pro-
blema, pois tratando-se de direito privado, a regra é a autorregulação
(autonomia) e intervenção mínima. Tanto na cessão de crédito quanto
no endosso, a regra, de acordo com o Código Civil, é que tais transfe-
rências de crédito sejam pro soluto, ou seja, a alienante do crédito (fatu-
rizada) não se responsabiliza pelo inadimplemento do devedor, apenas
pela existência do crédito.
Valendo-se da autorregulação e das normas do Código Civil, os
empresários poderiam estabelecer cláusula em contrário2, efetivamente
tornando a transferência pro solvendo, na qual a faturizada estaria vin-
culada a responder pelo inadimplemento. Contudo, mesmo diante de
uma situação de permissão legal de cláusula pro solvendo e de não haver
regulação estatal limitando as cláusulas do contrato de fomento mer-
cantil, o Superior Tribunal de Justiça possui o entendimento de que é
proibida tal cláusula e, portanto, nula.
A compreensão desta proibição não vem de um texto legal, mas
do fato de que ao pagar o crédito com deságio, a faturizadora estaria
assumindo o risco de inadimplência, e, assim, não poderia transferir tal
risco para a faturizada. Aqui reside o problema desta pesquisa: poderia o
STJ julgar em contrariedade à vontade declarada das partes? Ao fazê-lo,
estaria o STJ estabelecendo uma regulação não denida em lei?
A justicativa para a pesquisa se encontra no impacto social
de um Tribunal Superior julgar de encontro com a vontade das partes
declarada no contrato, posto se tratar de direito privado no qual não se
afasta a regulação particular sem norma de ordem pública, fato este que
terá impacto direto sociedade, em especial, na liberdade contratual.
O objetivo geral será analisar a idoneidade dos fundamentos
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