Regulação e concorrência no sistema financeiro

AutorRachel Sztajn e Marcos Paulo de Almeida Salles
Páginas41-58

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Ver Nota1

A inda há pouco tempo vêm os orga-nismos administrativos ligados à concorrência entendendo criar uma Superagência de Defesa da Concorrência e de Consumo. Mesmo sem entrar em detalhes macroeconômicos, as críticas foram avassaladoras, pois dita agência estaria recebendo competência para dizer dos movimentos de toda a atividade económica sob a égide dos mercados, uma vez que estaria apta a aprovar ou desaprovar todos os atos pertencentes à ordem económica, na medida em que se lhe fosse dado opinar preventiva ou repressivamente sob a plena relação entre a oferta e a procura.

Foram as últimas luzes do século XIX que levaram os americanos à ideia de instituir agências governamentais que correriam pelas mãos do poder executivo sem contaminação política, apenas para exercer função regulatória, no sentido de preservar a boa-fé nos relacionamentos onde devesse predominar a ordem pública, reunindo os fundamentos para autonomia do conhecimento científico que brotou da doutrina positivista.

Ocorre, no entanto, como nos lembra Tércio Sampaio Ferraz2 que "a livre concorrência de que fala a atual Constituição como um dos princípios da ordem económica (art. 170, IV) não é a do mercado concorrencial oitocentista de estrutura atomís-tica e fluida, isto é, exigência estrita de pluralidade de agentes e influência isolada e dominadora de um ou uns sobre os outros. Trata-se, modernamente, de um processo comportamental competitivo que admite gradações tanto de pluralidade, quanto de fluidez", tratando-se, portanto, neste campo da incidência das normas reguladoras da concorrência, em setores estritamente administrados por legislação especificamente autorizadora e regulatória, da participação e do funcionamento desse mercado. No caso em tela, aquele que vige sob o Sistema Financeiro Nacional.

Em decorrência do entendimento firmado pelo Supremo Tribunal Federal,3 de que "no que toca à organização, ao funcionamento e às atribuições do Banco Central, as normas constantes da Lei n. 4.595/64 têm status de lei complementar", afastou-se a

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eventual revogação do art. 18 da Lei n. 4.595/64 que trata especificamente da concorrência no âmbito das instituições financeiras.

Como lembra Arany Dornelles4 "pouquíssimas e raras atividades empresariais privadas conhecem tamanhas restrições e controles impostos pelo poder público, como a desenvolvida pelos banqueiros", valendo dizer que os eventuais atos de concentração, que pudessem vir a violar a ordem económica, para se enquadrar na Lei n. 8.884/94, antes têm que se enquadrar na viabilidade analisada à luz da ordem financeira sujeita ao microssistema normativo denominado Sistema Financeiro Nacional, regramento específico de Direito Económico encabeçado pela Lei n. 4.595/64.

A dúvida se põe quanto ao conflito entre as disposições das Leis ns. 4.594/64 e 9.447/97 e a Lei n. 8.884/94, particularmente quanto à incidência do art. 54 desta lei, relativo à análise para autorização pelo CADE, de atos de concentração.

Manifestam-se tanto a Advocacia-Ge-ral da União - AGU -, cuja tese é a da competência exclusiva do BACEN, quanto a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional - PGFN - que, com argumentos distintos dos oferecidos no parecer da AGU, chega à mesma conclusão no sentido de que não compete ao CADE manifestar-se, aprovando ou não, atos de concentração de instituições financeiras, ressalvando que deve, porém, ser deles informado.

O plenário do CADE refuta os argumentos do parecer da AGU, porque: a) entende que a Lei n. 4.595/64 não tem status de lei complementar, mas tem mesma hierarquia da Lei n. 8.884/94; b) que esta última não prevê imunidades setoriais que excluam da apreciação da autoridade adjudi-cante atos que possam por em risco a competição; c) que a legislação concorrencial, posterior à setorial revoga o art. 69 da pri-meira que daria ao BACEN competência para fiscalizar a competição no mercado financeiro; e, por derradeiro, d) que apenas frente à hipótese de risco sistémico, poderia o CADE deixar da apreciar atos de concentração naquele setor.

Tal como no parecer da PGFN propõem os senhores conselheiros do CADE ajustar a matéria por meio da celebração de convénio entre CADE e BACEN e não, como naquele parecer, que prega alteração ao art. 54 da Lei n. 8.884/94, o que, no entanto, já foi tentado com a assinatura de Convénio de Cooperação entre ambas as autarquias, assinado em 1999.

Há que, inicialmente, distinguir as pretensões do CADE nos processos de concentração de instituições financeiras que se aplicaria tão-só às voluntárias pois que, naquelas originadas da proteção ao risco sistémico, o CADE desde logo abdica de qualquer pretensão, embora jamais haja voluntárias incondicionais em relação à autorização do BACEN.

Reorganizações voluntárias compreendem a aquisição de participação societária de instituições financeiras em leilões de privatização e a aquelas resultantes de negociação privada entre acionistas, seguido, ou não esse processo, de incorporação ou fusão. Ou seja, embora dependente de aprovação prévia do BACEN, a concentração resulta de decisões que levam ao aumento da participação da instituição adquirente no mercado mediante processo de crescimento externo, ou, à consolidação da posição que já detinha.

A questão da concentração no setor financeiro é tema recorrente na literatura estrangeira, norte-americana e europeia, ligada à regulação setorial, notadamente diante da continuada onda de aquisições, fusões e incorporações de instituições pequenas e médias, formando grandes conglomerados, atraindo a atenção de estudiosos de diferentes áreas do conhecimento, sem contudo necessariamente acarretar falhas de mercado.

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Nos Estados Unidos da América, depois de afastada a restrição aos bancos com presença nacional, na metade da década passada, iniciou-se processo de expansão com a intensa aquisição de bancos regionais na busca de economias de escala, chegando-se à megaconcentração entre o Na-tions Bank e o Bank of America, em 1998, com o que surgiu o maior banco de varejo dos Estados Unidos da América.

A par dessa gigantesca, muitas outras aquisições e fusões envolvendo instituições de tamanho médio foram constatadas entre 1980 e 2000, pondo em primeiro plano a questão da competição no setor financeiro.

Explicam-se as concentrações na área não apenas pela busca de economias de escala, aumento de eficiência com redução de custos e elevação de receitas por cliente, aperfeiçoamento no acesso ao mercado de capitais. Outras são as possibilidades de oferecer empréstimos de maior vulto, ampliar a linha de "produtos", melhorar a qualidade dos administradores e aproveitar externalidades de rede usando caixas automáticos (ATMs) espalhados por diferentes áreas, produto este da inovação tecnológica.

Estudos feitos nos Estados Unidos da América tendem a indicar que, nada obstante a espantosa redução do número de instituições, não foram constatados prejuízos para consumidores de serviços bancários e que instituições regionais ou locais, de pequeno e médio porte, bem administradas, permanecem no mercado. Explica-se essa situação pelo conhecimento específico que tais instituições detêm, da confiança que merecem dos usuários.

Na Europa, igualmente, e sobretudo após a aprovação.da criação de moeda única para a área, ainda antes da entrada em circulação, a tendência ao crescimento he-xógeno de instituições financeiras era sensível. A criação do Banco Central Europeu, organização supranacional que deve harmonizar as atuações dos bancos centrais nacionais, tem como função, a estabilidade da moeda na região do Euro e o controle da inflação intrabloco, adotando-se desenho organizacional que o aproxima daquele do Federal Reserve Board norte-americano em relação aos bancos centrais regionais.

Há na União Europeia preocupação com a manutenção da competição no setor financeiro, principalmente após a ampliação geográfica do mercado pela adoção da moeda única. Discute-se regulação setorial e competição, com a elaboração de estudos sobre o microssistema do mercado de Euros, e propostas para a organização de um sistema em que regulação e concorrência se harmonizem para o que seria criada instituição supranacional e supra-atuais órgãos comunitários, como um comité de conciliação de interesses.5

O processo concèntracionista no setor financeiro não é novo no Brasil pois já nas décadas de 1960 e 1970 ofereceram-se estímulos à concentração bancária com renúncia fiscal importante. Visava-se à criação de bancos privados nacionais fortes, aparecendo, nesse período bancos como Bra-desco, Itaú, Unibanco, por exemplo. Mais recentemente o processo concèntracionista na área financeira é retomado, seja por conta da privatização de instituições financeiras estaduais, seja pelo imperativo de saneamento do sistema após a insolvência de instituições de grande porte como os bancos Nacional, Económico, Bamerindus, seja pela necessidade de chamamento à participação alienígena.

Com isso o aumento da presença de instituições estrangeiras no mercado, algumas delas atraídas pelo crescimento da economia nacional e as altas taxas de juros, é causa do acirramento da disputa entre os maiores bancos privados nacionais para manterem ou aumentarem sua posição estratégica, levando à nova onda de aquisição de instituições do sistema financeiro pequenas e médias (regionais ou nacionais).

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A redução do número de instituições financeiras é significativa e, sem dúvida, os temores de abusos perpetrados contra os clientes ou depositantes deve ser enfrentado com vigor (ou rigor). É nesse quadro que se insere o problema objeto deste texto e que tem várias faces: a económica, como já se apontou acima, a política que tem que ver tanto com a preservação das instituições nacionais, quanto com a defesa da concorrência e, finalmente, a jurídica, que deve dar o suporte legal para o deslinde da questão.

Certamente que qualquer solução jurídica será incompleta sem que se analisem as funções do Banco Central e o...

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