Regimes Jurídicos Especiais de Intervenção Administrativa, Liquidação Extrajudicial e Administração Temporária.

AutorAntonio Augusto Cruz Porto
Páginas181-251

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Constatada a insolvência bancária (fática ou jurídica, na exegese legal) ou mesmo verificado que o risco de iliquidez possa causar prejuízos graves aos credores e ao Sistema Financeiro Nacional, tanto no sentido de estancar o fluxo de injeção de capital no setor produtivo no País, quanto no potencial prejuízo de o encadeamento da crise afetar outras

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instituições financeiras saudáveis, cabe ao Banco Central do Brasil adotar as medidas jurídicas pertinentes ao saneamento e à estabilização do mercado financeiro, consubstanciadas na Lei 6.024, editada em 13 de março de 1974, e em diplomas pósteros.

Como já dito amiúde, referida legislação aborda os aspectos inerentes à intervenção e à liquidação extrajudicial de empresas financeiras - privadas e públicas não federais27- e as cooperativas de crédito, excluindo-as, à primeira vista, do regime geral respeitante à legislação falimentar comum. Registre-se que a legislação não as exclui da falência propriamente dita (ou seja: as instituições financeiras estão sujeitas a falir), mas apenas as retira dos procedimentos legais intrínsecos à legislação falimentar ordinária. Assim se o fez, tal como igualmente já se afirmou, em virtude da preponderância da atividade exercida por essas empresas, da especialidade da matéria e, sobretudo, pelo espírito preservacionista e conservadorista da coletividade, simbolizada no funcionamento hígido do Sistema Financeiro Nacional.

Importante considerar que a Lei 6.024/74, para além de concretizar um marco bastante relevante no cenário jurídico brasileiro atual, resulta da compilação de alguns institutos legais que a precederam, muitos remontados à época do Império. A primeira lei que abordou especificamente a falência bancária foi editada em 22 de agosto de 1860, sob nº 1.083, regulamentada pelo Decreto 2.691, de 14 de novembro de 1860, considerando a falência bancária a partir da caracterização do instituto da cessação dos pagamentos. Posterior-

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mente, com o advento do Decreto 917, de 24 de outubro de 1890, estabeleceu-se para fins de consideração do estado de falência, em paralelo ao critério da cessação de pagamentos, o da impontualidade.

Interessante anotar, ainda, que o Decreto 3.309, de 20 de setembro de 186428, já considerava a relevância da atividade bancária como requisito distintivo em relação às demais atuações empresariais, retirando-as do alvo atinente à legislação falimentar ordinária. Nas palavras de Requião, "esse sistema de afastar certas empresas de procedimento comum da falência evoluiu significativamente no Império, a ponto de ser expressiva fonte inspiradora da mais recente legislação nacional sobre a espécie"29.

Em 17 de dezembro de 1908 foi editada a Lei 2.024, com escopo de abordar os aspectos principais do regime falimentar, a natureza da falência, as características do instituto e os procedimentos de declaração judicial, deixando de realizar a distinção entre empresas que a ela estariam sujeitas. Adotou-se, além do critério da falta de pagamento de obrigação líquida e certa, a falência decorrente dos atos falimentares do comerciante, conforme descrição no artigo 2º da aludida legislação.

Os fatos econômicos e sociais ocorridos no final da década de 1920 e início dos anos 1930 tornaram a pressupor a idealização de uma estrutura normativa especial e distintiva

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das casas bancárias, instrumentalizada no Decreto 19.479, de 12 de dezembro de 1930, regulamentado pelo Decreto 19.634, de 28 de janeiro de 193130. Releva mencionar que o artigo 5º do Decreto 19.479, além de retirar os bancos do modelo comum de processamento falimentar, fixou a liquidação extrajudicial dessas instituições, excluindo-as do processo realizado dentro do Poder Judiciário, determinando, ainda, que a liquidação deveria ser procedida "sob a direção de um liquidatário eleito pela maioria dos credores e sujeito à fiscalização de um delegado do Governo Provisório"31.

Outro ponto de sobranceiro realce, transcrito no Decreto 19.634, é a divisão da liquidação extrajudicial em duas fases distintas, nominadas de liquidação provisória e liquidação definitiva. Na primeira, sob direção de um delegado do Governo, proceder-se-ia ao "levantamento do balanço do ativo e passivo na matriz, filiais e agências, com arrolamento detalhado dos bens e respectivas avaliações, feitas de acordo com a praxe comercial nos balanços anuais", bem como na "organização da lista completa dos credores, com indicação da importância dos créditos de cada um e da classificação que lhes competir"32. Na segunda, "o liquidatário escolhido na assembleia geral de credores assumirá imediatamente a administração plena do estabelecimento, ficando investido de amplos poderes para liquidar a massa", devendo "a liquidação ser encerrada dentro do prazo de um ano, a partir da data do respectivo requerimento à Inspetoria Geral dos Bancos"33.

Reformada a anterior Lei de Falências pelo Decreto 7.661, de 21 de junho de 1945, sobreveio o Decreto-lei 9.228, de 03 de maio de 1946, trazendo evoluções e reformulações no pro-

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cedimento de liquidação extrajudicial dos bancos, mantendo a extrajudicialidade do procedimento, mediante a direção de liquidação designado pelo Ministro da Fazenda.

Segundo Requião, "essa simbiose entre a falência e a liquidação extrajudicial não deu bons resultados, pois meses depois o governo editava novo Decreto-lei, o de nº 9.346"34. Permitia-se, então, ao estabelecimento que, por motivo não atendível mediante intervenção, se encontrasse na impossibilidade de prosseguir em suas operações normais, requerer à Superintendência da Moeda e do Crédito (SUMOC) sua liquidação extrajudicial. A liquidação ainda poderia ser requerida pelo interventor, se este encontrasse provas de prática de crimes definidos na Lei de Falências e nas de economia popular por parte de diretores e administradores do estabelecimento bancário35.

A reforma bancária advinda da Lei 4.595 de 1964 oportunizou o desenvolvimento mais claro dos institutos da inter-venção e da liquidação extrajudicial, antevendo-se de maneira expressa a forma pela qual o Estado poderia intervir nas instituições financeiras36. Ato contínuo, os Decretos-lei nº 48, de 18 de novembro de 1966, e nº 685, de 17 de julho de 1969, dispuseram acerca dos procedimentos de intervenção administrativa e liquidação extrajudicial dos bancos, quando se verificassem anormalidades na condução dos negócios sociais, inclusive por culpa ou responsabilidade dos dirigentes do estabelecimento37.

São relevantes, contextualizando, as palavras de Otávio Yazbek, no sentido de que as organizações das práticas de regulação financeira não exsurgem puramente da conduta do

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homem econômico, que racionaliza condutas e administra os riscos, advindo "o arcabouço institucional também de elementos culturais, de processos políticos, da estrutura jurídica ou administrativa preexistente e mesmo da forma de inserção de cada país na economia mundial"38.

De maneira geral, os preceitos normativos insculpidos no rol de legislações antecedentes foram materializados na Lei 6.024/74. Alguns relevantes princípios formadores do espírito norteador dos procedimentos de intervenção e liquidação extrajudicial forjaram-se a partir dessas experiências normativas, donde ressaíram, estruturalmente, os valores traduzidos no ordenamento que, atualmente, está a reger o processo de intervenção do Banco Central nas instituições financeiras insolventes.

Dentre esses valores basilares, pode-se citar a ideia de se promover a intervenção do Estado por meio de atos extrajudiciais, excluindo o processo de decretação do crivo do Poder Judiciário39, bem como a nomeação de agentes públicos dota-

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dos de capacidade técnica específica para gerir o intrincado processo intervencionista. A tanto se justifica a especialidade da matéria envolvida40, cuja complexidade de termos, técnicas e estruturas procedimentais certamente esbarrariam na morosidade formalista ínsita ao sistema processual civil então vigente41.

Ademais, à vista da sobejamente aludida importância das empresas financeiras, há de se concordar que a intervenção do Estado não pode ser falha ou equívoca. É dizer: a intervenção do Banco Central impõe um juízo de certeza tamanho a tal ponto que não sejam obstaculizados os circuitos financeiros do País por decisões fundadas em dados errôneos ou apartados da realidade, de modo que a avaliação prévia acerca da efetiva situação econômica da instituição é condição inexorável para torná-la legítima e eficaz. Quer parecer, assim, que a atribuição de legitimidade ao Banco Central, tanto na decretação como na administração dos regimes especiais42, revela-

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-se imbuída de logicidade, escorando-se na evolução da legislação brasileira, que paulatinamente separou as modalidades interventivas destinadas aos bancos daquelas concernentes às empresas comuns, bem como priorizou a gestão especializada do procedimento liquidatório aos órgãos de supervisão do Sistema Financeiro.

Repise-se, entretanto, que a lei não exclui os bancos dos procedimentos falimentares - e, portanto, da incidência da própria lei falimentar de regência. O ordenamento jurídico brasileiro tão-somente previu instrumentos interventivos prévios, geridos pela entidade reguladora com vistas a - expletivamente usa-se o termo - preservar a estabilidade do Sistema Financeiro, da coletividade e do bem comum43. Vem daí que "tanto a intervenção quanto a liquidação extrajudicial constituem eficazes instrumentos de intervenção do Estado, que procura através de seus métodos evitarem maiores males, afastando a ação de particulares, com...

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