O regime constitucional dos Tribunais de Contas

AutorProf. Carlos Ayres Britto
CargoProfessor de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Sergipe (UFS). Doutor em Direito Constitucional pela PUC/SP. Advogado e Consultor Jurídico.
Páginas1-12

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1. A natural diversidade de interpretação dos dispositivos jurídicos

1.1. Sempre que participo de um ritual católico (embora seja verdade que não participo sempre), nunca deixo de rezar o "Pai Nosso". E é de longa data que verifico ser o substantivo feminino "tentação", ali, encarado como um pedaço de mau caminho. Um afasta de mim esse cálice, pois é isso que deduzo do trecho "não nos deixeis cair em tentação, mas livrai-nos do mal, amém". Entretanto, eu me remeto para Epicuro (341/270 a.C.), na Grécia antiga, e vou identificar sobre o mesmo tema (a tentação) um juízo de valor diametralmente diferenciado, porquanto expresso neste aconselhamento: "quando a tentação chegar, ceda logo, antes que ela vá embora".

1.2. Trago à baila esta comparação prosaica para lembrar o fato de que, nos domínios da Ciência Jurídica, os mesmos dispositivos-objeto se prestam a interpretações diferentes e até mesmo contrárias. Tal como se dá com o Page 2 Evangelho de Cristo, a suscitar nos evangelistas posturas interpretativas descoincidentes. Com o que já antecipo minhas escusas pela discrepância de entendimento entre o que já se escreveu (e bem) sobre os Tribunais de Contas e as breves notas que, nesta exposição, levam a minha assinatura.

1.3. Como de remansoso conhecimento, a lei em sentido material quer valer para todas as ações a que se refere e por isso é que se dota do atributo da generalidade. Quer valer para todos os sujeitos a quem se destina e por esse motivo se confere a característica da impessoalidade. Quer valer para sempre (enquanto não for revogada, lógico) e daí o seu traço ontológico da abstratividade. Ora, querendo-se assim genérica, impessoal e abstrata, é dizer, querendo-se válida para tudo, para todos e para sempre, a lei não tem como fugir do discurso esquemático ou clicherizador da realidade; que é um discurso eminentemente simplista, reducionista. Do que decorre ter que pagar um preço por essa linguagem-rótulo e o preço que a lei paga por incidir nesse tipo de comunicação verbal contracta é a abertura dos seus flancos para o dissenso interpretativo.

2. O tribunal de contas da união enquanto órgão nãointegrante do congresso nacional

2.1. Feita a ressalva, começo por dizer que o Tribunal de Contas da União não é órgão do Congresso Nacional, não é órgão do Poder Legislativo. Quem assim me autoriza a falar é a Constituição Federal, com todas as letras do seu art. 44, litteris: "O Poder Legislativo é exercido pelo Congresso Nacional, que se compõe da Câmara dos Deputados e do Senado Federal" (negrito à parte). Logo, o Parlamento brasileiro não se compõe do Tribunal de Contas da União. Da sua estrutura orgânica ou formal deixa de fazer parte a Corte Federal de Contas e o mesmo é de se dizer para a dualidade Poder Legislativo/Tribunal de Contas, no âmbito das demais pessoas estatais de base territorial e natureza federada.

2.2. Não que a função de julgamento de contas seja desconhecida das Casas Legislativas1. Mas é que os julgamentos legislativos se dão por um critério subjetivo de conveniência e oportunidade, critério, esse, que é forma discricionária de avaliar fatos e pessoas. Ao contrário, pois, dos julgamentos a cargo dos Tribunais de Contas, que só podem obedecer a parâmetros de ordem técnico-jurídica; isto é, parâmetros de subsunção de fatos e pessoas à objetividade das normas constitucionais e legais.

2.3. A referência organizativo-operacional que a Lei Maior erige para os Tribunais de Contas não reside no Poder Legislativo, mas no Poder Judiciário. Esta a razão pela qual o art. 73 da Carta de Outubro confere ao Tribunal de Contas da União, "no que couber", as mesmas atribuições que o art. 96 outorga aos tribunais judiciários. Devendo-se entender o fraseado "no que couber" Page 3 como equivalente semântico da locução mutatis mutandis; ou seja, respeitadas as peculiaridades de organização e funcionamento das duas categorias de instituições públicas (a categoria do Tribunal de Contas da União e a categoria dos órgãos que a Lei Maior da República eleva à dignidade de um tribunal judiciário).

2.4. Mas não se esgota nas atribuições dos tribunais judiciários o parâmetro que a Lei das Leis estabelece para o Tribunal de Contas da União, mutatis mutandis. É que os ministros do Superior Tribunal de Justiça também comparecem como referencial (em igualdade de condições, averbe-se) para "garantias, prerrogativas, impedimentos, vencimentos e vantagens" dos ministros do TCU, tudo conforme os expressos dizeres do ξ 3º do art. Constitucional de nº 732.

3. O tribunal de contas da união como instituição nãosubalterna ao congresso nacional

3.1. Diga-se mais: além de não ser órgão do Poder Legislativo, o Tribunal de Contas da União não é órgão auxiliar do Parlamento Nacional, naquele sentido de inferioridade hierárquica ou subalternidade funcional. Como salta à evidência, é preciso medir com a trena da Constituição a estatura de certos órgãos públicos para se saber até que ponto eles se põem como instituições autônomas e o fato é que o TCU desfruta desse altaneiro status normativo da autonomia. Donde o acréscimo de idéia que estou a fazer: quando a Constituição diz que o Congresso Nacional exercerá o controle externo "com o auxílio do Tribunal de Contas da União" (art. 71), tenho como certo que está a falar de "auxílio" do mesmo modo como a Constituição fala do Ministério Público perante o Poder Judiciário. Quero dizer: não se pode exercer a jurisdição senão com a participação do Ministério Público. Senão com a obrigatória participação ou o compulsório auxílio do Ministério Público. Uma só função (a jurisdicional), com dois diferenciados órgãos a servi-la. Sem que se possa falar de superioridade de um perante o outro.

3.2. As proposições se encaixam. Não sendo órgão do Poder Legislativo, nenhum Tribunal de Contas opera no campo da subalterna auxiliaridade. Tanto assim que parte das competências que a Magna Lei confere ao Tribunal de Contas da União nem passa pelo crivo do Congresso Nacional ou de qualquer das Casas Legislativas Federais (bastando citar os incisos III, VI e IX do art. 71). O TCU se posta é como órgão da pessoa jurídica União, diretamente, sem pertencer a nenhum dos três Poderes Federais. Exatamente como sucede com o Ministério Público, na legenda do art. 128 da Constituição, incisos I e II. Page 4

3.3. Toda essa comparação com o Ministério Público é, deveras, apropriada. Assim como não se pode exercer a jurisdição com o descarte do "Parquet", também é inconcebível o exercício da função estatal de controle externo sem o necessário concurso ou o contributo obrigatório dos Tribunais de Contas. Mas esse tipo de auxiliaridade nada tem de subalternidade operacional, vale a repetição do juízo. Traduz a co-participação inafastável de um dado Tribunal de Contas no exercício da atuação controladora externa que é própria de cada Poder Legislativo, no interior da respectiva pessoa estatalfederada.

3.4. O que se precisa entender é muito simples. No âmbito da função legislativa, que é a função mais típica do Parlamento ou a função que empresta seu nome ao Poder que dela se encarrega, o prestígio que a Lei Maior confere ao Parlamento mesmo é o maior possível: ele é quem dá a última palavra a respeito de todo e qualquer ato legislativo. Mas não é assim que ocorre no círculo da função de controle externo, pois algumas atividades de controle nascem e morrem do lado de fora das Casas Legislativas. A partir da consideração de que as próprias unidades administrativas do Poder Legislativo Federal são fiscalizadas é pelo...

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