Reformas e contrarreformas no direito das sociedades

AutorJorge Manuel Coutini-io de Abreu
Páginas22-29

Page 22

Nos últimos vinte anos, sob o acicate ora de escândalos financeiros e derrocadas empresariais, ora da crise económico--social (mais ou menos) globalizada, o direito das sociedades - principalmente o direito das sociedades anónimas, em particular no campo da governação societária (corporate gover-nancé) - vem-se apresentando, como alguns dizem, em "estado de reforma permanente".

Reformas (e contrarreformas), na (desunida) União Européia (e não só) têm-se revelado muitas vezes algo contraditórias, com rumo incerto, em navegação à vista, ao sabor de ventos variados, ora soprando autorregulação e desregulação, ora soprando regulação legal-imperativa

Recentemente, em 12 de dezembro de 2012, a Comissão da União Européia apresentou uma comunicação (COM/2012/0740 final) mais um "Plano de ação" sobre "direito das sociedades europeu e governo das sociedades - um quadro jurídico moderno com vista a uma maior participação dos acionistas e a sustentabilidade das empresas".

Um dos pontos do "Plano" (n. 3.2) refere-se à melhoria da supervisão pelos acionistas das transações com partes relacionadas, isto é, dos contratos da sociedade com os seus administradores ou acionistas maioritários. Mas pouco adianta sobre as medidas para essa melhoria. A este tema dedicarei o n. I.

Outro ponto do "Plano" (n. 4.6) é dedicado aos "grupos de empresas". A Comissão propõe-se apresentar em 2014 "uma iniciativa para melhorar tanto a informação disponível sobre grupos como o reconhecimento do conceito de 'interesse do grupo'". Sobre o "interesse do grupo" falarei no n. II.

Finalizarei a minha comunicação com algumas notas acerca da recapitalização dos bancos na União Européia, em particular em Portugal (n. III).

I - Negócios entre sociedade e partes relacionadas

Nos negócios celebrados entre uma sociedade e parte (com ela) relacionada é muito freqüente a existência de conflitos de interesses: divergência de princípio entre o interesse da parte relacionada e o interesse da sociedade, convindo portanto à parte relacionada negócio em certos termos e à sociedade

Page 23

negocio em termos diferentes. Há, pois, o risco de sugação (siphoning, tunneling) de bens societários por partes relacionadas.

Pede-se então ao Direito instrumentos que neutralizem os conflitos de interesses, previnam ou diminuam o risco de as partes relacionadas obterem vantagens especiais em detrimento da sociedade e/ou de sócios (mormente sócios minoritários). Instrumentos, preferencialmente, de controlo preventivo (proibições, limitações procedimentais), não tanto de controlo reativo geral (invalidades, responsabilidade civil, etc.) - também aqui vale mais prevenir do que remediar.1

1. Negócios proibidos

Deve ser proibida (sob pena de nulida-de) a celebração de contratos de crédito (em sentido amplo) entre sociedade e administrador (diretamente ou por pessoa interposta - designadamente cônjuge, ascendentes e descendentes, sociedade por ele dominada). Não poderá a sociedade, portanto, conceder empréstimos ou crédito a administradores, efetuar pagamentos por conta deles ou prestar garantias a obrigações por eles contraídas.

É esta a solução tradicionalmente consagrada em leis francesas e portuguesas.2

2. Negócios permitidos livremente

Sem especiais exigências procedimentais, poderão ser celebrados negócios entre a sociedade e, direta ou indiretamente, partes relacionadas quando tais negócios estejam compreendidos no próprio ou típico comércio/objeto da sociedade e nenhuma vantagem especial seja concedida à parte relacionada?

Por exemplo, uma sociedade fabricante ou comercializadora de veículos automóveis vende alguns a administradores ou sócios em condições idênticas às aplicáveis a qualquer terceiro ou segundo cláusulas contratuais gerais, sem, portanto, qualquer cláusula preferencial ou intuitu personae.

Deverá, porém, exigir-se que estes negócios, quando (individualmente ou agrupados) tenham valor superior a certo montante (v.g., 1% do capital próprio da sociedade), sejam comunicados ao órgão de administração e/ ou ao órgão de fiscalização da sociedade e mencionados em documento de prestação de contas anual.4 Assim se facilitaria o controlo ou fiscalização por sócios e por órgãos sociais relativamente às condições em que os negócios foram realizados.

3. Negócios permitidos desde que respeitados requisitos procedimentais especiais

Entre, de um lado, os negócios proibidos (para os administradores) e, do outro lado, os negócios permitidos livremente (para as partes relacionadas em geral) temos todos os demais negócios celebráveis entre a sociedade e administradores ou sócios (sócios muitas vezes fornecedores, clientes, concorrentes ou credores da sociedade).

Deveria prever-se a obrigatoriedade de os negócios acima de certo valor entre a sociedade e, direta ou indiretamente, partes relacionadas serem autorizados previamente.

Page 24

  1. A autorização competiria ao órgão de administração, com parecer favorável do órgão fiscalizador (se existir), quando os negócios sejam de valor superior a certo montante (v.g., 1% do capital próprio da sociedade).

    Repare-se que é diferente a eficácia de um negócio depender só de a sociedade ser representada, perante a parte relacionada, por um ou mais administradores (em número suficiente para vinculá-la) ou por outros representantes (não orgânicos), ou depender também de uma deliberação autorizadora do conselho de administração.5 Esta deliberação promove maior ponderação e controlo recíproco dos administradores, e diminui o risco de a parte relacionada ser especialmente avantajada.6

  2. A autorização competiria à assembléia geral, sob proposta do órgão de administração e parecer do órgão fiscalizador (se existir), quando os negócios sejam de valor superior a (outro) certo montante (v.g., 5% do capital próprio da sociedade); na deliberação da assembléia geral está impedida de votar a parte relacionada em situação de conflito de interesses.7"8

    Em qualquer caso, as autorizações concedidas pelo conselho de administração ou pela assembléia geral devem ser divulgadas em documentos de prestação de contas.

    Anote-se ainda a possibilidade de as deliberações do órgão de administração ou da assembléia geral autorizadoras de negócios serem inválidas (designadamente anuláveis porque abusivas). Declarada nula ou anulada uma dessas deliberações, é ineficaz o negócio entretanto celebrado entre a sociedade e a parte relacionada.

II - Sobre o "interesse do grupo"
1. Quadro problemático geral

A possibilidade de uma sociedade participar em outras sociedades, inclusive em posição de controlo ou domínio, foi admitida pelas leis de alguns países já no século XIX e, generalizadamente, no século XX. Os grupos de sociedades (em sentido amplo) comandam hoje em grande medida a economia (e não só) das nações e internacional.

O interesse de um sócio pessoa humana não empresária, ainda que seja sócio maiori-tário ou dominante, coincide geralmente com o interesse da respetiva sociedade: é interesse comum de todos os sócios ganhar o mais possível, na proporção das participações sociais, nessa sociedade. E para as situações de conflito de interesses entre sócio maioritário e sócios minoritários, o direito das sociedades dispõe de regras e princípios (mais ou menos tradicionais) em geral satisfatórios.

Não é assim quando o sócio dominante é uma sociedade. O interesse da sociedade dominante é normalmente divergente do interesse da sociedade dominada', o sócio ou sócios da dominante pretendem ganhar nesta o mais possível, ainda que à custa da sociedade dominada, mais precisamente à custa dos sócios minoritários e/ou dos credores desta.9

Page 25

É, pois, facilmente imaginável (e com-provável) uma sociedade dominante utilizar o poder de controlo causando danos em sociedades...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT