A Reforma Trabalhista como violação do direito fundamental à saúde e à sustentabilidade humana

AutorCarla Rezende de Freitas
Páginas70-86

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Carla Rezende de Freitas1

Introdução

É incontestável que o ordenamento jurídico brasileiro não pode ser estático e deve acompanhar as transformações sociais, culturais e econômicas de cada país. O direito nasce dos fatos e, na medida em que eles se alteram, deve compatibilizar-se com as necessidades da sociedade.

Esse dinamismo do ordenamento jurídico é benéfico, pois demonstra a busca do homem pelo aperfeiçoamento. Contudo, é notório, também, que com o advento dos acontecimentos no Brasil relativos à corrupção, crise econômica, sobrecarga fiscal e déficit previdenciário, o poder legislativo brasileiro tem atuado em uma onda reformista, em nome de suposta efetivi-dade, o que vem solapando diretamente os dogmas jurídicos relativos à dignidade do trabalhador, conquista estabelecida no decorrer de muitos anos de luta e suor.

O direito do trabalho vem se avizinhando dessa realidade com a constante flexibilização das normas, como é o caso da reforma da Consolidação das Leis do Trabalho, mas cada vez mais se distanciando do espírito originário da lei trabalhista, em franco retrocesso social.

Flexível é aquilo que é maleável. No direito do trabalho, o termo flexibilizar relaciona-se com a ideia de uma legislação que abra espaço para negociações coletivas, mitigando o rigorismo na aplicação dos princípios, como o da proteção e o da irrenunciabilidade, ou seja, o Estado se afasta, deixando espaço para a vontade das partes. A questão que se impõe é saber se o Brasil está pronto para enfrentar tal mudança, e até que ponto essas mudanças estariam violando diretamente os direitos fundamentais do trabalhador, nesse tópico em especial, o direito fundamental à saúde e à sustentabilidade humana.

Entretanto, como se vislumbrará, o que não se pode perder de vista são os Direitos fundamentais em seu conceito, a dignidade do trabalhador como fundamento dos direitos fundamentais, a proteção à saúde e à sustentabilidade humana nas relações de trabalho, além do direito ao lazer e à desconexão do trabalho.

Para tanto, foi realizada uma análise de alguns artigos da Lei n. 13.467/2017, a Lei da Reforma Trabalhista, que propõe a alteração de mais de duzentos dispositivos da CLT, impactando diretamente nas leis do FGTS e de custeio da Previdência Social, demons-trando de maneira irrefutável um retrocesso social, pois trata-se de alterações legislativas que provocam o que Ingo Sarlet denomina de “erosão constitucional”2. O nível de insegurança gerado pela reforma trabalhista é muito eminente, contendo a Lei n. 13.467/2017 diver-sas contradições internas e numerosos contrassensos, em claro desafio à Constituição Brasileira de 1988 e a

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amplo consenso internacional da importância da tutela dos direitos trabalhistas no mundo.

O tema proposto é atual e se justifica, por fazer uma provocação ao analisarem-se alguns aspectos, como os limites da negociação coletiva, a jornada de trabalho e o banco de horas, não sendo a pretensão de quem escreve exaurir todos os questionamentos oriundos da referida lei, diante de clara impossibilidade, uma vez que existem diversos questionamentos, críticas e dúvidas quanto às proposituras do legislador.

Dos direitos humanos fundamentais: conceito e dimensões

Não é unívoco o conceito de direitos humanos, a começar pela variedade de termos que geralmente são empregados para designá-los, tais, como: direitos naturais, direitos do homem, direitos da pessoa humana, direitos individuais, direitos públicos subjetivos, liberdades fundamentais, liberdades públicas e direitos fundamentais3.

Na visão de Bobbio os inúmeros termos são expressões muito vagas, sendo a maioria das definições apenas uma repetição de forma desnecessária de uma mesma ideia usando termos diferentes4. Todavia, de uma maneira didática pode-se considerar que os Direitos Humanos, intitulados naturais, são aqueles que ultrapassam a esfera de cada Estado, sendo decorrentes da própria natureza humana, da existência e resistência do homem e, portanto, têm validade mesmo que não sejam positivados por parte dos Estados.

A formulação da doutrina dos direitos humanos surgiu com a teoria dos direitos naturais ou jusnaturalismo, que defende a existência de um direito natural a despeito de uma regulação por parte do Estado, ou seja, a lei natural é fonte de todo o direito, assim a formação das leis não deve derivar da concepção do legislador, mas de uma razão natural.

Para Ingo Wolfgang Sarlet há distinção entre “direitos fundamentais”, “direitos humanos” e “direitos dos homens”. Assim, o termo “direitos fundamentais” se aplica aos direitos do ser humano reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional positivo de determinado Estado. Já a expressão “direitos humanos” diz respeito aos direitos solenemente proclamados nos documentos de direito internacional, por referirem-se às posições jurídicas reconhecidas ao ser humano como tal, independentemente de sua vinculação a determinado Estado e, nessa perspectiva, assumem um caráter supranacional e aspiram validade universal para todos os povos e em todos os tempos. Por fim, o termo “direitos dos homens” tem, nas palavras de Sarlet, conteúdo marcadamente jusnaturalista, pois refere-se a uma fase anterior ao reconhecimento dos direitos no âmbito do direito positivo interno e internacional.5

Os direitos humanos, por serem universais, estão reconhecidos tanto na Declaração Universal de 1948 quanto nos costumes, princípios jurídicos e tratados internacionais. Já os direitos fundamentais estão positivados nos ordenamentos internos de cada Estado, especialmente nas suas Constituições.6

De uma maneira geral, os direitos humanos e os direitos fundamentais destinam-se, uns e outros, a conferir dignidade à existência humana, o que cria uma tendência inevitável em reconhecê-los com o mesmo significado. Contudo, não podem ser compreendidos como sinônimos, pois apesar de suposta similitude, a distinção entre ambos é imprescindível, em face das consequências jurídicas advindas da aplicação de um ou outro.7

Direitos fundamentais são direitos essenciais à pessoa humana, definidos na Constituição de um Estado, contextualizados, histórica, política, cultural, econômica e socialmente. Por sua vez, os direitos humanos “arrancariam” da própria natureza e daí o seu caráter inviolável, intemporal e universal; os direitos fundamentais seriam os direitos objetivamente vigentes numa ordem jurídica concreta.8 Assim, direitos fundamentais são direitos humanos constitucionalizados, gozando de proteção jurídica no âmbito estatal, reservando-se o emprego da expressão direitos humanos para as convenções e declarações internacionais, que desfrutam de proteção supraestatal.

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Segundo Bobbio, os direitos humanos surgiram a partir da evolução e ampliação da noção dos direitos fundamentais. Para ele, são quatro fases percorridas pela humanidade em direção à conquista dos direitos humanos:

  1. Constitucionalização dos direitos fundamentais, primeiramente, no Estado Liberal, posteriormente, no liberal-democrático, “passando os direitos do homem por uma mutação de direitos naturais a direitos positivos”;

  2. Progressiva e contínua extensão dos direitos fundamentais, representando, primeiramente, a passagem do Estado Liberal para o Estado Liberal-Democrático, com o incremento dos direitos políticos aos direitos civis, e, posteriormente, a transição para o Estado Democrático Social, quando aos direitos civis e políticos agregaram-se os direitos sociais;

  3. Universalização destes direitos, a partir de 1948, com a Declaração Universal dos Direitos do Homem, “vale dizer, a transposição de sua proteção do sistema interno para o sistema internacional”;

  4. Especificação dos direitos, necessária à medida que emergiam novas pretensões, justificadas com base na consideração de exigências específicas de proteção, seja com relação ao sexo, seja com relação às várias fases da vida, seja com relação às condições, normais ou excepcionais, da existência humana, ou seja, de pretensões que devem ser reconhecidas, em relação à sociedade grande ou pequena, ou até mesmo grandíssima, da qual faz parte9.

Portanto, a universalização da titularidade dos direitos fundamentais decorre da sua definição como direitos inerentes à pessoa humana, que gozam de proteção dos ordenamentos jurídicos estatais. Sendo que os direitos humanos situam-se acima das leis emanadas do poder estatal, cujo fundamento é o respeito à digni-dade humana; a pessoa humana é o valor fundamental da ordem jurídica.10

No tocante ao Brasil, é importante observar que a Constituição Federal de 1988 se utilizou das expressões direitos fundamentais e direitos humanos com total previsão técnica. De fato, quando o texto constitucional brasileiro quer fazer referência, mais particularmente, aos direitos neles previstos, adota a expressão “direitos fundamentais”, como faz no art. 5º, § 1º, segundo o qual “as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”. Por sua vez, quando o mesmo texto constitucional se refere às normas internacionais de proteção da pessoa humana, faz alusão à expressão “direitos humanos”, tal como no § 3º do mesmo art. 5º, segundo o qual “os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais”11.

Ou seja, quando a Constituição pretende se referir, indistintamente, aos direitos previstos pela ordem jurídica interna e pela ordem...

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