A Reforma Trabalhista e a prevalência do negociado sobre o legislado

AutorLeticia Aidar/Rogério Renzetti/Guilherme de Luca
Páginas31-40

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1. Introdução

A história do direito do trabalho pode ser inserida no contexto da própria evolução histórica das formas de exploração do trabalho humano2, exsurgindo como fonte material deste ramo jurídico especializado a questão social que marcou o período Pós-Revolução Industrial. Desde então pautou-se pela necessidade de imposição de limites à liberdade contratual, para que a hipossuficiência econômica do trabalhador não o transformasse em seu próprio algoz.

A assimetria que caracteriza estas relações jurídicas privadas sempre reivindicou uma necessária intervenção do Estado, para que, por meio da elaboração de normas cogentes, possa ser assegurado um patamar mínimo civilizatório de direitos condizentes com o resguardo da dignidade da pessoa humana do trabalhador, que assumiu posição de destaque no ordenamento jurídico, sendo considerada como princípio fundamental de que todos os demais princípios derivam e que norteia todas as regras jurídicas3.

Esta centralidade confere unidade de sentido a todo o sistema constitucional e, por consequência, a toda ordem jurídica, devendo ser o ponto de partida e o de chegada de todas as normas destinadas à disciplina das relações sociais, de forma a inspirar e limitar a elaboração, a inter-pretação e a aplicação do Direito4.

O direito social ao trabalho, como instrumento de concretização da dignidade humana indispensável à configuração da sociedade inclusiva que caracteriza o Estado Democrático de Direito, deve ser interpretado e aplicado em perfeita sintonia com este referencial axiológico, de maneira que se atenda à própria uni-dade constitucional. Trata-se de direito que reafirma a própria noção de cidadania, a qual, numa perspectiva contemporânea, pressupõe o acesso a direitos sociais e econômicos que possibilitem ao cidadão o desenvolvimento de todas as suas potencialidades5.

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Por isso, o direito ao trabalho não legitima qualquer modalidade de labor, mas apenas os que não se configurem como aviltantes à dignidade humana, com estrita observância do piso norma-tivo de direitos consignados na ordem jurídica. Até porque, se existe um direito fundamental, deve também existir um dever fundamental de proteção6.

Pode-se afirmar que o trabalhador não se resume a um ser laborioso e produtivo; é uma pessoa e um cidadão, ainda que, ao celebrar e executar o contrato de trabalho, submeta-se à autoridade e direção de outrem7.

Não obstante todas estas premissas, assistimos, recentemente, ao advento da Lei n. 13.467/2017, que, sob o pretexto de ampliação da empregabilidade e de “modernização” das relações de trabalho, promove, em verdade, a sua precarização, atentando ferozmente contra direitos arduamente conquistados pela classe trabalhadora ao longo de décadas.

Registre-se que a Organização Internacional do Trabalho – OIT, a partir do estudo de dados e estatísticas de 63 países, dos últimos 20 anos, concluiu que a diminuição da proteção legal conferida aos trabalhadores não estimula a criação de empregos e não é capaz de reduzir a taxa de desemprego8.

Como se não bastasse, todo o trâmite legislativo foi marcado por um açodamento sem precedentes, sendo certo que as leis que disciplinam as condições de trabalho devem ser fruto de um amplo diálogo social, a ser realizado de maneira concreta, e não meramente formal, conforme o compromisso internacional assumido pelo Brasil ao ratificar a Convenção n. 144 da OIT.

As profundas alterações legislativas introduzidas pela chamada “reforma trabalhista” atendem exclusivamente aos interesses empresariais e financeiros, contribuindo, sobremaneira, para a desconstrução da própria natureza tutelar do direito laboral. Neste contexto, destaca-se a prevalência do negociado sobre o legislado, tema sobre o qual nos propomos a analisar.

2. A prevalência do negociado sobre o legislado no âmbito da reforma trabalhista

A negociação coletiva constitui um dos mais importantes métodos de resolução de conflitos coletivos de trabalho. Traduz-se em mecanismo autocompositivo que tem por função principal a criação de normas jurídicas disciplinadoras das condições de trabalho a serem aplicadas às relações laborais desenvolvidas no âmbito da sua esfera de aplicação9.

Como fruto da autonomia da vontade coletiva, os acordos e convenções coletivos de trabalho constituem instrumentos normativos salutares de pacificação dos conflitos sociais10.

De acordo com a disposição contida no artigo 2º da Convenção n. 154 da OIT, a expressão negociação coletiva compreende todas as negociações que tenham lugar entre, de uma parte, um empregador, um grupo de empregadores ou uma

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organização ou várias organizações de empregadores e, de outra parte, uma ou várias organizações de trabalhadores, com o fim de fixar as condições de trabalho e emprego; regular as relações entre empregadores e trabalhadores; ou regular as relações entre os empregadores ou suas organizações e uma ou várias organizações de trabalhadores, ou alcançar todos estes objetivos de um só vez.

Por sua vez, como forma de valorização da própria negociação coletiva, e a fim de que esta possa ser utilizada como efetivo veículo de melhoria da condição social dos trabalhadores, os limites à flexibilização de direitos sempre foram norteados pela aplicação do princípio da adequação setorial negociada. Neste sentido, as lições de Mauricio Godinho Delgado:

“Pelo princípio da adequação setorial negociada as normas autônomas juscoletivas construídas para incidirem sobre certa comunidade econômico-profissional podem prevalecer sobre o padrão geral heterônomo justrabalhista desde que respeitados certos critérios objetivamente fixados. São dois esses critérios autorizativos: a) quando as normas autônomas juscoletivas implementam um padrão setorial de direitos superior ao padrão geral oriundo da legislação heterônoma aplicável; b) quando as normas autônomas juscoletivas transacionam setorialmente parcelas justrabalhistas de indisponibilidade apenas relativa (e não de indisponibilidade absoluta)”11.

Nesta perspectiva, somente podem ser objeto de flexibilização pela via negocial os direitos de indisponibilidade relativa, seja em razão da própria natureza da parcela em foco, seja pela existência de permissivos normativos que autorizem esta transação setorial negociada, a exemplo das disposições contidas nos incisos VI, XIII e XIV do artigo 7º da Constituição da República, in verbis:

“Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:

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VI – irredutibilidade do salário, salvo o disposto em convenção ou acordo coletivo;

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XIII – duração do trabalho normal não superior a oito horas diárias e quarenta e quatro semanais, facultada a compensação de horários e a redução da jornada, mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho;

XIV – jornada de seis horas para o trabalho realizado em turnos ininterruptos de revezamento, salvo negociação coletiva”.

Admite-se, assim, que a negociação coletiva possa ter por objeto a redução de salário, a compensação e a redução de jornada de trabalho e a ampliação da jornada nos regimes realizados em turnos ininterruptos de revezamento.

Contudo, não é admitida a transação setorial de parcelas de indisponibilidade absoluta. A título de ilustração, não podem ser flexibilizados os direitos inerentes à anotação da CTPS e ao registro do empregado, ao pagamento do salário mínimo legal e às normas de saúde e de

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segurança do trabalho12. Nesta linha, sempre caminhou a jurisprudência uniformizada do Tribunal Superior do Trabalho13.

Verifica-se que os instrumentos coletivos, como frutos de uma negociação coletiva bem-sucedida, podem estabelecer direitos mais benéficos aos empregados, em conformidade com o princípio da norma mais favorável, nos exatos termos do artigo 7º, caput, da Constituição da República.

Por outro lado, deve ser considerada excetiva a fixação pela via negocial de condições de trabalho inferiores ao piso legal, em prejuízo à classe trabalhadora. Estes casos somente se justificam nas hipóteses previstas no Texto

Constitucional, exigindo a devida justificação, como forma de buscar a proteção de interesses mais amplos dos trabalhadores, como a manutenção do vínculo de emprego14.

No entanto, umas das inovações introduzidas pela Lei n. 13.467/2017 foi a inserção do artigo 611-A à CLT, apresentando um rol exemplificativo de temas em relação aos quais haverá a prevalência do negociado sobre o legislado15. Em síntese, autoriza-se a prevalência dos acordos e convenções coletivos de trabalho sobre a lei em toda e qualquer matéria, com ressalva daquelas veiculadas no artigo 611-B, o qual reproduz, em sua grande maioria, os direitos sociais previstos no artigo 7º da Constituição da República16.

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Permite-se, portanto, a redução, ou mesmo a supressão, de direitos trabalhistas em sede de negociação coletiva, abrindo as portas à precarização das relações de trabalho e contrariando a própria finalidade ínsita aos instrumentos negociais coletivos17.

Sabe-se que os acordos e convenções coletivos de trabalho têm a sua força normativa expressamente reconhecida no artigo 7º, inciso XXVI, do Texto Constitucional, constituindo fontes formais autônomas do Direito do Trabalho. São contratos sociais normativos.

Deste modo, o legislador constituinte, de certa forma, já estabeleceu a prevalência destes diplomas normativos. Todavia, esta prevalência sempre teve por norte a estipulação de patamares normativos mais...

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