A reforma trabalhista no Brasil em tempos de acirramento das desigualdades sociais à ação de um capitalismo 'sem peias

AutorRaimundo Simão de Melo/Cláudio Jannotti da Rocha
Páginas120-127

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[...] Este é o momento em que, tanto do ponto de vista prático, quanto ideológico e teórico, as classes dominantes e dirigentes, em escala mundial, apostam (e ganham) no retrocesso, no recuo das conquistas sociais e econômicas das classes subalternas. [...] Difunde-se a ideia de que a liberação das forças que impulsionam a acumulação do capital é um movimento “natural” e “irreversível” em direção ao progresso e à realização da autonomia do indivíduo” (Luiz Gonzaga Belluzzo, 2013)

1. Introdução

As desigualdades sociais estão sendo aprofundadas nestes tempos de capitalismo globalizado e hegemonizado pelos interesses das finanças. Conforme Piketty, enquanto em 1973 a população 1% mais rica detinha 10% da renda, em 2013 esse 1% passou a deter 20% (PIKETTY, 2014). Essas considerações são relevantes quando se discute o perfil estruturante da reforma trabalhista objeto deste texto que, alterando substantivamente o sistema de regulação do trabalho, aprofundará as iniquidades sociais, rebaixando o patamar remuneratório da massa trabalhadora, com danos à sociedade.

Nesse cenário, a tela pública de proteção aos que mais necessitam sucumbe à força bruta e às políticas de ajuste que continuam sendo “recomendadas” pelos organismos emprestadores de dinheiro, apesar de comprovadamente ineficazes e deletérias aos cidadãos, à saúde e à economia dos países que as adotam, fundamentadas em medidas de austeridade que matam (STUCKLER y BASU, 2014). Movido, por um lado, por seu desejo insaciável de acumulação de riqueza abstrata (BELLUZZO, 2013), o capitalismo vai engendrando novas formas de organização, buscando eliminar quaisquer obstáculos ao seu “livre trânsito” (BIAVASCHI, 2017), entre eles os direitos de proteção aos trabalhadores e as instituições públicas aptas a concretizá-los, como é o caso do sistema federal de fiscalização e da Justiça do Trabalho. Aliás, não à toa, o Supremo Tribunal Federal, STF, em recursos extraordinários de decisões do Tribunal Superior do Trabalho, TST, está sendo instado a roubar-lhe a fala para que essa Corte, em suas decisões, não ofereça limites “à livre iniciativa”, como se estivéssemos em tempos da Constituição liberal de 1891. Por outro, tal avalanche destrutiva encontrou na tecitura social de um Brasil de heranças patriarcais e escravocratas condições materiais para se expandir, atingindo todas as esferas da sociabilidade humana (BIAVASCHI, 2007).

Este artigo discorre sobre os fundamentos da reforma trabalhista recentemente aprovada e sancionada sem vetos para viger em novembro de 2017, Lei n. 13.467/2017, compreendendo-a a partir de um conjunto de reformas estruturais que o atual governo vem aprovando, buscando, assim, desvendar seu significado e seus impactos sobre o mundo do trabalho e sobre a própria sociedade brasileira. Trata-se de cenário em que a flexibilização das normas públicas de proteção ao trabalho e o ataque às instituições incumbidas de concretizá-las aparecem como tendência mundial, ainda que as especificidades de cada país influam na forma e na intensidade de suas implementações. É que a elaboração legislativa não se dá apartada da economia e das condicionantes sociais e políticas do momento histórico em que produzida.

Para tanto, o texto fará breves considerações sobre o processo de constituição do Direito do Trabalho, uma das expressões da resposta antiliberal engendrada pela humanidade à crise da Ordem Liberal do Século XIX, em tempos de capitalismo constituído, ao perceber que essa ordem não dava conta das questões econômicas e sociais, bem como trará algumas notas sobre a construção, no Brasil, da Consolidação das Leis do Trabalho, CLT, e da Justiça do Trabalho. Depois desses regis-tros, importantes para que se compreenda a profundidade das alterações que a reforma trabalhista recentemente aprovada busca introduzir, discute seus significados e aborda as falácias das promessas dos que a defendem. Seguem rápidas considerações sobre algumas experiências internacionais em reformas similares para, então, nas considerações finais, abordar aspectos da reforma que evidenciam a avalanche destrutiva que essa lei infraconstitucional representa para o Direito e para Justiça do Trabalho, mais especificamente.

2. Notas sobre o Direito do Trabalho e sobre a regulação e a Justiça do Trabalho no Brasil

Em 11 de novembro de 2017, quando a reforma trabalhista recentemente aprovada passará a viger, a CLT teria completado 74 anos. A história de sua construção está profundamente imbricada ao processo de criação e instalação da Justiça do Trabalho no Brasil. A aprovação da reforma, de que trata este

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artigo, veio marcada pela disputa teórica, grosso modo, entre duas correntes de pensamento: de um lado, os que defendem que sua “rigidez” é incompatível com os “tempos modernos”, sendo necessárias profundas alterações visando ao aumento do emprego e ao incremento da produtividade para que os bens produzidos no Brasil possam ser competitivos em nível mundial; de outro, os que entendem ser equivocado atribuir à regulamentação do trabalho as causas do desemprego e da perda de competitividade, concluindo que os direitos sociais não podem sucumbir frente à competição internacional dos mercados. Isso em tempos em que nos quatro cantos do mundo, salvo exceções, os direitos sociais continuam a perder ter-reno diante da “força bruta” de um capitalismo “sem peias” (BELLUZZO, 2004; BIAVASCHI, 2017). Este artigo filia-se à segunda corrente.

É importante que se contextualize o momento econômico e social em que a CLT foi elaborada. De país tipicamente agrário, em 1930, marcado por resiliente herança monocultora, patriarcal e escravocrata, o Brasil iniciou seu processo de industrialização e, em 1980, atingiu a condição de 8ª economia mundial. Tratou-se de difícil trajetória em que o papel do Estado foi fundamental na coordenação do desenvolvimento econômico, por um lado e, por outro, na institucionalização das regras sociais de proteção ao trabalho e na criação de instituições públicas aptas a fiscalizar sua aplicação e a concretizá-las, como é o caso do sistema de fiscalização e da Justiça do Trabalho (BIAVASCHI, 2007).

Quando se olha para o processo de construção do Direito do Trabalho é importante sublinhar que durante a Ordem Liberal do Século XIX, em que o primado era o da autonomia das vontades e o Estado era laissez faire, a exploração da força de trabalho era extrema, incluídos homens, mulheres e menores, os quais não contavam com normas de proteção que limitasse a ação predatória do capitalismo constituído. Nessa démarche, dando-se conta do acirramento das desigualdades provocado pelo novo modo de produção, trabalhadores e, depois, suas organizações, intelectuais, partidos políticos, sufragistas, a Igreja, passaram a demandar do Estado uma regulação apta a limitar a ação predatória do movimento do capital (BIAVASCHI, 2007; BIAVASCHI, 2017).

Em meio a esse processo, os conflitos e as tensões sociais se agudizavam, impulsionando a luta por direitos, sobretudo contra a exploração das “meias-forças”, mulheres e crianças. A sociedade reagiu em vários campos e em diversas esferas e, em um processo que se completou no século XX, o Estado passou a intervir, produzindo normas. Eram criadas as condições para o nascimento de um novo ramo do Direito que, desde sua gênese, rompeu com a lógica liberal da igualdade entre as partes e, compreendendo a profunda assimetria nas relações entre capital e trabalho, colocou diques à ação tritura-dora do movimento do capital, contrapondo-se ao primado da autonomia das vontades.

O pacto de Versalhes, em 1919, foi marco decisivo para sua afirmação como Direito Social, com reconhecimento internacional. Frase inscrita na Constituição da OIT, O trabalho não é mercadoria, buscou solidificá-lo como um direito moderno e social que assentou na condição humana do trabalhador o tema central de seus fundamentos, situando-se na contramão de um liberalismo que não dava conta da Questão Social. Não à toa, esse Direito e as instituições aptas...

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