Reforma Trabalhista: interpretação da norma e aplicação contratual

AutorRaimundo Simão de Melo/Cláudio Jannotti da Rocha
Páginas162-170

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Introdução

O presente estudo pretende iniciar a árdua e longa tarefa de interpretação dos conteúdos da Lei n.13.467/2017, que alterou a CLT para afirmar no Brasil atuação estatal amplamente favorável aos empregadores nas relações capital-trabalho. Para tanto, é necessário, de início, tratar das especificidades da interpretação no Direito do Trabalho, com destaque para a inexistência de uma pirâmide hierárquica de dispositivos normativos, contrariamente ao que ocorre no âmbito do Direito Comum. Tal especificidade marca o procedimento interpretativo justrabalhista, não obstante pretenda o legislador reformador estabelecer aprioristicamente situações de prevalência do negociado coletivamente sobre o legislado. De qualquer modo, independentemente de prevalência do negociado sobre o legislado, a interpretação justrabalhista deve pautar-se pela Constituição da República, por suas regras e princípios. Afirma-se aqui a prevalência das normas constitucionais sobre as demais regras de direito, o que deve também influenciar a interpretação e a aplicação das novas regras celetistas pós-reforma.

É claro que na interpretação constitucional não se nega a hermenêutica clássica, bem como tal não se dá nas especificidades da interpretação do Direito do Trabalho. O que se destaca é a necessidade, em ambos os casos, de se reconhecer a plasticidade da norma no momento da revelação do sentido da nova regra de direito, cujo procedimento deve contemplar princípios, valores e ideologias ínsitos à Constituição da República. Na mesma linha, é essencial que o princípio da dignidade da pessoa humana seja referencial básico para a interpretação das novas regras, impondo a inconstitucionalidade dos dispositivos em sentido contrário.

Importante também que se considere o princípio da interpretação conforme a Constituição como técnica de inter-pretação e como técnica de controle de constitucionalidade, para que todo o conteúdo da nova lei se curve aos comandos constitucionais.

Com relação à aplicação dos novos conteúdos celetistas decorrentes da Lei n.13.467/2017, o presente estudo traz a análise da sua eficácia temporal e da forma de incidência das suas regras nos contratos de emprego em curso. De início e por óbvio se afirma a irretroatividade das novas regras celetistas, nos termos estabelecidos pela Constituição da República. Com relação à incidência nos contratos de emprego, há regras que serão aplicadas independentemente de ACT, CCT ou alteração contratual, enquanto há uma que exige especificamente ACT ou CCT. Por fim, há regras que dependem de alteração contratual para que possam incidir no pacto laborativo já em curso, sendo estas as que merecem maior destaque na análise referente à aplicação da Lei n.13.467/2017.

1. Especificidades da interpretação no direito do trabalho

O Direito do Trabalho é ramo jurídico autônomo, que tem estrutura própria e que desde seu desenvolvimento inicial vinha se apartando de sua matriz civilista original. A análise da auto-nomia do Direito do Trabalho pode considerar, também, seus métodos de interpretação, integração e aplicação do direito. A autonomia científica do Direito do Trabalho parece ser, hoje, consenso. O professor Mauricio Godinho Delgado define autonomia, no Direito, pela “qualidade atingida por determinado ramo jurídico de ter enfoques, princípios, regras, teorias e condutas metodológicas próprias de estruturação e dinâmica.”2

Até a edição da Lei n.13.467/2017, havia razoável consenso em relação às significativas diferenciações existentes entre o Direito do Trabalho e os demais ramos jurídicos situados no âmbito do Direito Privado, especificamente aqui no que concerne à interpretação, integração e aplicação do direito. Obviamente que as especificidades justrabalhistas no plano da interpretação não têm o condão de afastar o Direito do Trabalho das linhas gerais básicas traçadas pela Hermenêutica Jurídica, como será visto e conforme adverte Mauricio Godinho Delgado3, mas também é inegável que há neste ramo jurídico especializado importante enfoque valorativo no momento da revelação do sentido da regra de direito.

Lenio Streck, em seu “Dicionário de Hemenêutica”, conceitua e explica a ideia básica acerca da interpretação: “Auslegung (reprodução do sentido) e Sinngebung (atribuição de sentido) são termos estabelecidos na interpretação do Direito desde o século XIX. Auslegung vem de legen, ‘pousar, deitar’, aus, ‘fora’, portanto demonstrar, apresentar, pôr à mostra.”4 Para que se possa aplicar a regra de direito é necessário que haja antes a atribuição de sentido ao seu texto.

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Ao longo das últimas décadas, principalmente desde a CLT, parte importante da doutrina compreendia importantes particularidades da interpretação jurídica no Direito do Trabalho. Mauricio Godinho Delgado explica como isso se dá:

Não obstante esse leito comum em que se insere o processo interpretativo justrabalhista, cabe se aduzir uma especificidade relevante que se agrega – harmonicamente – na dinâmica de interpretação do Direito do Trabalho. É que esse ramo jurídico deve ser sempre interpretado sob um enfoque de prevalência de certo modo valorativo (a chamada jurisprudência axiológica), inspirado pela prevalência dos valores e princípios essenciais ao Direito do Trabalho no processo de interpretação. Assim, os valores sociais preponderam sobre os valores particulares, os valores coletivos sobre os valores individuais. A essa valoração específica devem se agregar, ainda – e harmonicamente –, os princípios justrabalhistas, especificamente um dos nucleares do ramo jurídico, o princípio da norma mais favorável.5

Possível inferir das lições do prof. Mauricio Godinho Delgado que para se interpretar os novos dispositivos normativos da CLT reformada pela Lei n.13.467/2017 é necessário considerar os valores e os princípios essenciais do Direito do Trabalho, ainda que tal lei ordinária tenha sido editada sem a devida observância a esses mesmos conteúdos axiológicos.

O Direito do Trabalho guarda distinções em relação ao Direito Comum no que concerne à hierarquia de normas jurídicas, vez que neste campo é possível estabelecer uma pirâmide hierárquica de diplomas normativos, o que também influencia na interpretação, integração e aplicação da norma justrabalhista. Diferentemente do que ocorre nos demais ramos jurídicos vinculados ao Direito Privado, no Direito do Trabalho não se estabelece, pelo menos até a tentativa de prevalência do negociado sobre o legislado inaugurada com a Lei n. 13.467/2017, hierarquia entre diplomas normativos.

No Direito Comum a hierarquia normativa tende a ser rígida e inflexível. Mauricio Godinho Delgado explica que em tal âmbito “os diplomas normativos (lei em sentido material) classificam-se, hierarquicamente, segundo sua maior ou menor extensão de eficácia e sua maior ou menor intensidade criadora do

Direito.”6 A pirâmide hierárquica do Direito Comum traz a Constituição no vértice, seguida das leis complementares, leis ordinárias, leis delegadas, medidas provisórias, decretos e, por fim, “diplomas dotados de menor extensão de eficácia e mais tênue intensidade normativa.”7

O Direito do Trabalho, noutro sentido, não estabelece tal rigidez, além de contar com diplomas normativos autônomos que não se inserem na estrutura própria do Direito Comum. A importância de Acordos Coletivos de Trabalho e Convenções Coletivas de Trabalho na conformação jurídica do contrato de emprego faz com que as respostas interpretativas do Direito Comum não se estabeleçam aprioristicamente no Direito do Trabalho. Até a edição da Lei n. 13.467/2017 não havia o legislador fixado critérios de prevalência obrigatória entre normas autônomas em detrimento das heterônomas8 ou vice-versa. Mais uma vez explica Mauricio Godinho Delgado:

O critério normativo hierárquico vigorante no Direito do Trabalho opera da seguinte maneira: a pirâmide normativa constrói-se de modo plástico e variável, elegendo para seu vértice dominante a norma que mais se aproxime do caráter teleológico do ramo justrabalhista. À medida que a matriz teleológica do Direito do Trabalho aponta na dire-ção de conferir solução às relações empregatícias segundo um sentido social de restaurar, hipoteticamente, no plano jurídico, um equilíbrio não verificável no plano da relação econômico-social de emprego –, objetivando, assim, a melhoria das condições socioprofissionais do trabalhador –, prevalecerá, tendencialmente, na pirâmide hierárquica, aquela norma que melhor expresse e responda a esse objetivo teleológico central justrabalhista. Em tal quadro, a hierarquia das normas jurídicas não será estática e imutável, mas dinâmica e variável, segundo o princípio orientador de sua configuração e ordenamento.9

No plano da interpretação do Direito do Trabalho, no conflito entre duas normas heterônomas utiliza-se o intérprete do princípio da norma mais favorável10. Se o conflito se estabelece entre norma autônoma e heterônoma aplica-se o princípio da adequação setorial negociada11, valendo-se o intérprete

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da teoria do conglobamento.12 Tais diretrizes interpretativas não invalidam a aplicação e o cuidado hermenêutico tradicionais, mas impõem especificidades que devem ser consideradas na avaliação do caso concreto.

2. Interpretação, Constituição e Direito do Trabalho

Não obstante se possa afirmar a inexistência de hierarquia entre diplomas normativos em geral para a interpretação no Direito do Trabalho, parece correto estabelecer a prevalência da Constituição da República sobre as demais regras de direito. Ainda que não trate...

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