A Reforma Trabalhista e os impactos na Previdência Social

AutorCirlene Luiza Zimmermann
Páginas144-159

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1. Introdução

A Constituição estabeleceu a dignidade humana e os valores sociais do trabalho como fundamentos da nossa República. Para efetivá-los, previu diversos direitos sociais, entre os quais o trabalho e a previdência social, mas também a educação, a saúde e a segurança.

Sem educação, não é possível ter trabalho digno e nem ter a noção da importância de ser previdente. Consequentemente, haverá sérios riscos de não se ter saúde de qualidade. Também não se terá assegurado o direito social à segurança em sua face privada, ou seja, a garantia de ter o que comer, onde morar e de sustentar a família.

O sistema de seguridade social pensado pelos legisladores constituintes em 1988 é formado pela saúde, pela assistência e pela previdência. Visa garantir à população a cobertura dos riscos a que todos estão suscetíveis nessas três áreas.

Apesar de a proposta de reforma da previdência em tramitação no Congresso Nacional ser fundada na necessidade de busca da sustentabilidade do sistema previdenciário brasileiro, que estaria em perigo em razão do elevado déficit, há um contrassenso no discurso e nas ações de seus defensores, pois a recém-aprovada reforma trabalhista (Lei n. 13.467/2017) veio justamente em sentido contrário, visto que trará impactos negativos na previdência social, seja pela redução da arrecadação, seja pelo incremento dos custos, afrontando princípios constitucionais do sistema de seguridade social e prejudicando a efetiva cobertura dos riscos que deveriam ser assegurados.

2. Princípios da Previdência Social

A proteção dos direitos da seguridade social pelo Estado surge a partir da implantação da sua face social, cuja evolução decorre da percepção de que a liberdade humana do liberalismo era uma liberdade sem direitos e sem garantias, que conduzia a graves e irreprimíveis situações de arbítrio.

Bonavides explica que com o moderno Estado social cresceram os fins do Estado e sua esfera de responsabilidades, notadamente pela imposição ao poder estatal das necessidades do mundo moderno.2

Diante dessa constatação, importa distinguir o Estado social do socialista, para cuja tarefa novamente utilizar-se-á a lição do eminente constitucionalista:

Quando o Estado, coagido pela pressão das massas, [...] confere [...] os direitos do trabalho, da previdência, da educação, intervém na economia como distribuidor, dita o salário, manipula a moeda, regula os preços, combate ao desemprego, protege os enfermos, dá ao trabalhador e ao burocrata a casa própria, controla as profissões, compra a produção, financia as exportações, concede crédito, institui comissões de abastecimento, provê necessidades individuais, enfrenta crises econômicas, coloca na sociedade todas as classes na mais estreita dependência de seu poderio econômico, político e social, em suma, estende sua influência a quase todos os domínios que dantes pertenciam, em grande parte, à área de iniciativa individual, nesse instante o Estado pode, com justiça, receber a denominação de Estado social.

Quando a presença do Estado, porém, se faz ainda mais imediata e ele se põe a concorrer com a iniciativa privada, nacionalizando e dirigindo indústrias, nesse momento, sim, ingressamos na senda da socialização parcial.

É à medida que o Estado produtor puder remover o Estado capitalista, dilatando-lhe a esfera de ação, alargando o número das empresas sob seu poder e controle, suprimindo ou estorvando a iniciativa privada, aí, então, correrá grave perigo toda a economia do Estado burguês, porquanto, na consecução desse processo, já estaremos assistindo a outra transição mais séria, que seria a passagem do Estado social ao Estado socialista.3

A partir do Estado social, portanto, a proteção social encontra-se dentre as suas funções, gerando uma forte dependência do indivíduo, que passa a estar impossibilitado, perante fatores alheios à sua vontade, de prover certas necessidades existenciais mínimas.4

A partir desse vínculo e/ou dependência do indivíduo com o/do Estado, fortemente desenvolvido pelos princípios do Estado social, algumas áreas passaram a exigir obrigatória intervenção estatal, não bastando um Estado mínimo, sob pena de afronta a direitos fundamentais consagrados por esse mesmo Estado em sua carta constitucional.

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Dentre essas áreas, encontram-se os direitos sociais da saúde, da assistência social e da previdência, denominados no Brasil de direitos da seguridade social. Quando se fala desses direitos, portanto, a “morte” ou “desmaio” do Estado em nada melhora a vida dos homens, por mais que essas ocorrências sejam propaladas como necessárias para a ampliação da liberdade de viver. Muito pelo contrário, eventual afastamento do Estado de sua responsabili-dade no tocante a esses direito tende a gerar ainda mais desigualdade entre os indivíduos.5

A instituição do sistema da seguridade social vem ao encontro dos fundamentos e objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, especialmente o da digni-dade da pessoa humana, pois somente a proteção social eficaz pode garanti-la, inserida em uma sociedade livre, justa e solidária, preocupada com a erradicação da pobreza e da marginalização, bem como com a redução das desigualdades sociais e regionais; por meio da promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Conforme leciona Duarte, a principal finalidade da seguridade social é a cobertura dos riscos sociais, o amparo social mantido por receita tributária ou assemelhada, sendo que sua instituição deve-se ao fato de o homem ter percebido sua impotência frente aos encargos produzidos pelos riscos sociais, ainda que protegido pelo núcleo familiar.6

Costanzi lembra que determinadas características pessoais, como o sexo e a raça do trabalhador, afetam a probabilidade de informalidade e, por consequência, a probabilidade de usufruir de proteção social: “essa relação, mesmo quando isolando outros efeitos, denota o efeito nefasto da discriminação sobre a informalidade e a desproteção social de deter-minados grupos que são vítimas dessa mazela social”.7

Ao se estudar o sistema da seguridade social é indispensável que se analise se ele abrange os programas de renda mínima ou renda cidadã, tão difundidos no Brasil nos últimos anos. Para Figueiredo, o sistema da seguridade social não abrange tais programas, por mais que alguns deles estejam inseridos no complexo da assistência social, como é o caso do benefício assistencial de prestação continuada, previsto na Lei n. 8.742/938. Para a autora, a renda de cidadania, instituída no Brasil pela Lei n. 10.835/2004, é um direito autônomo dos cidadãos de desfrutarem das riquezas do local no qual nasceram ou residem; não se trata de uma ajuda aos pobres, embora ajude aos menos favorecidos e contribua para o decréscimo da desigualdade; é um direito assecuratório de cidadania, permitindo a opção de cada pessoa de se cadastrar ou não para receber o valor, dentro da esfera da sua liberdade; logo, não permite qualquer segregação realizada pelo Estado, definindo quem deve ou não desfrutar desse direito.9

Na lição de Figueiredo, a instituição de uma política pública como a da renda de cidadania visa concretizar direitos sociais, que se lastreiam na própria dignidade dos indivíduos10, logo, deve ser estruturada de modo a não se converter num desestímulo ao trabalho, como uma política assistencialista qualquer, que em nada contribui para o acréscimo de cidadania dos contemplados11. Assim, a renda de cidadania deve se fundar em três pilares fundamentais: universalidade, individualidade e incondicionalidade12.

Por outro lado, o art. 203 da Constituição Federal de 1988 prevê que a assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social, tendo por objetivos a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice; o amparo às crianças e adolescentes carentes; a promoção da integração ao mercado de trabalho; a habilitação e reabilitação das pessoas portadoras de deficiência e a promoção de sua integração à vida comunitária; e a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei.

Os programas de transferência de renda adotados no Brasil visam reduzir as desigualdades sociais por meio da redução da pobreza, com o que, indiretamente, atingem os objetivos traçados para o sistema de assistência social, especialmente o mais amplo deles, que se refere à proteção à família necessitada.

Assim, ao pensar os programas de renda mínima ou renda cidadã na perspectiva de Figueiredo, isto é, independentes da condição financeira dos beneficiados, de

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fato, devem ser afastados do sistema de seguridade social. Contudo, ao se verificar que o modelo brasileiro do programa de transferência de renda focou na redução da pobreza, não há como negar sua proximidade com o sistema de assistência social, já que seus objetivos são similares e os resultados alcançados em um campo interferem na atuação no outro.

A organização da seguridade social compete ao Poder Público, devendo dar-se com base nos seguintes princípios, constitucionalmente previstos (art. 194, parágrafo único da...

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