A Reforma Trabalhista e a corrida ao fundo do poço: o uso das normas internacionais do trabalho como alternativa para a garantia dos direitos humanos

AutorRaimundo Simão de Melo/Cláudio Jannotti da Rocha
Páginas280-291

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1. Introdução

A Lei n. 13.467, de 13 de julho de 2017, promoveu profundas alterações na Consolidação das Leis do Trabalho e em outras leis que tratam de aspectos trabalhistas, “a fim de adequar a legislação às novas relações de trabalho”, conforme expresso em sua ementa2. Trata-se da reforma trabalhista, implementada às pressas em um contexto político social conturbado, com a justificativa de necessidade de modernização da legislação e combate ao aumento nos níveis de desemprego.

Pretende-se evidenciar como a implementação da reforma trabalhista brasileira insere-se em um contexto de desregulamentação da legislação de proteção social impulsionado pelo aspecto meramente econômico da globalização, que produz um efeito corrosivo da regulamentação trabalhista por todo o mundo.

A partir da constatação de que a desregulamentação e a retirada de proteções trabalhistas pretende, em grande medida, tornar a lei brasileira mais atrativa ao mercado, principalmente para os investidores internacionais e o capital especulativo, evidencia-se como o fenômeno representa uma “corrida ao fundo do poço”, e não uma forma de retomada de crescimento econômico e fortalecimento social.

Para fazer frente a este quadro, ressalta-se a importância do manejo de instrumentos normativos vigentes em nossa ordem jurídica e que, tradicionalmente, são esquecidos, mas podem servir como salvaguarda à proteção dos direitos trabalhistas. As normas internacionais do trabalho, portanto, surgem como alternativa para a preservação dos direitos humanos a serem garantidos aos cidadãos trabalhadores, servindo como forma de resistência e reconstrução do Direito do Trabalho brasileiro.

2. A globalização e a corrida ao fundo do poço

A globalização3, como processo social pelo qual os fenômenos se aceleram e se difundem pelo globo terrestre, tem promovido, cada vez mais, a compressão do espaço-tempo, influenciando de formas assimétricas os Estados e a sociedade mundial.

As últimas décadas do século XX e as primeiras do século XXI testemunharam mudanças significativas no cenário econômico, político e social em escala mundial, com o desenvolvimento do fenômeno da globalização. O incremento na utilização de novas fontes energéticas, o surgimento de novas tecnologias eletrônicas e informáticas, a revolução digital e a internet, o aprofundamento das relações comerciais entre vários países, o crescimento da concorrência internacional, a maior velocidade nos meios de transporte e a aceleração dos meios de comunicação propiciaram alterações fundamentais no modo dos diferentes Estados se relacionarem, bem como na inserção das empresas transnacionais nesse mercado de alcance mundial.

Em que pese suas várias faces, o fenômeno da globalização tem dado proeminência ao aspecto econômico. E assim se diz porque a instituição de um mercado cada vez mais global, com destaque para a atuação de empresas transnacionais e para o capital financeiro volátil, que se transporta pelo globo terrestre conforme os atrativos para maior lucratividade, é característica palpável do fenômeno em questão.

O atual sistema capitalista globalizado, como ensina Manuel Castells, trata-se de um tipo de capitalismo profundamente diferente de seus predecessores históricos, por apresentar duas características distintas de funcionalidade: é global e está estruturado, em grande medida, em uma rede de fluxos financeiros. O capital passou a funcionar globalmente como uma unidade em tempo real, sendo percebido, investido e acumulado principal-mente na esfera de circulação, isto é, como capital financeiro4.

A face meramente econômica da globalização, desvinculada de preocupações de ordem social, acaba por agravar ainda mais as desigualdades sociais, aprofundando as marcas da

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pobreza absoluta e da exclusão social em muitas partes do planeta. Há o enfraquecimento dos Estados nacionais, que passam a se submeter às exigências do capital financeiro e especulativo para atrair investimentos, inclusive sem dar à população efetivas garantias de preservação dos níveis trabalhistas e dos direitos humanos conquistados ao longo dos anos. O direito do trabalho vem sofrendo, paulatinamente, sua desconstrução na ordem interna dos Estados, que passam a competir entre si com o intuito de tornar seus ordenamentos jurídicos mais atrativos para os investimentos. Os trabalhadores e seus direitos passam a ser encarados como “custos” e, como tais, devem ser reduzidos para atender aos anseios do capital transnacional de aumento dos lucros.

A globalização econômica, com o objetivo de instituir um mercado cada vez mais global, vem abolindo as distâncias físicas e implementando liberdade gradativamente maior de circulação de capitais, produtos, empresas e trabalhadores. Nesse contexto, Alain Supiot nos alerta para os perigos da transformação dos trabalhadores em mais um dos elementos comensuráveis e móveis nesse mercado, já que os seres humanos e as coisas passam a ser “liquidáveis”, na acepção jurídica do termo5. Os trabalhadores se tornam, desse modo, mais um recurso econômico a ser computado pelas empresas e pelos Estados.

É bem verdade que os custos trabalhistas já eram considerados como prejudiciais à competitividade internacional desde o século XVIII. Como observa Arturo Bronstein, citando Nicolas Valticos6, a relação entre o livre comércio e o trabalho já estava implícita na teoria de David Ricardo sobre custos comparativos, e, em 1788, o banqueiro suíço Jacques Necker, Ministro das Finanças do Rei Francês Luís XVI, argumentava que a abolição dos domingos como dia de descanso daria uma margem competitiva para a economia de um país em relação a outros países que não fizessem o mesmo.

Durante o século XIX, vários donos de indústrias, como Robert Owen (Inglaterra) e Daniel Legrand (França) lançaram apelos por uma regulamentação internacional do trabalho, partindo do entendimento de que os países que desejassem desenvolver políticas de melhorias das condições de trabalho para sua classe trabalhadora sofreriam com a competição em relação a outros países.

Foi no final do século XX, porém, que se intensificou a noção de que os custos trabalhistas devem ser reduzidos para propiciar uma posição mais vantajosa na competição internacional a nível mundial.

A crescente interdependência econômica entre os Estados e a rápida expansão do comércio mundial, associada à mobilidade de fluxos de capital financeiro internacional, originaram um amplo debate sobre as medidas tutelares dos direitos humanos dos trabalhadores ameaçados pelo crescimento da concorrência internacional e pela consequente desvalorização competitiva das políticas sociais internas, como destaca Adalberto Perulli7.

No contexto da globalização neoliberal, se a competência econômica se torna o fim último de toda a ordem jurídica, de forma que a expansão da produção e do comércio passam a ser fins em si mesmos, para o alcance de tais objetivos são também colocados em competição todos os seres humanos de todos os países. Tanto é assim, que Alain Supiot observa que, quando da fundação da Organização Mundial do Comércio (OMC) pelo Acordo de Marrakech (1994), os seres humanos desapareceram da lista dos objetivos assinalados para a economia e para o comércio8.

Onofre Alves Batista Júnior9 observa que, com a mundialização do capital, este se comporta como um mecanismo capaz de propiciar a desigualdade social, guerras fiscais e precarização do trabalho, dando ensejo a um ambiente explosivo que coloca em risco a paz social.

A globalização econômica, orientada pela ideologia neo-liberal, passa a se guiar pela lógica segundo a qual o mercado precisa de maior flexibilidade do que é permitido pelas legislações nacionais. Sob tais premissas, esse processo provocou a reestruturação do sistema capitalista e o predomínio da circulação do capital financeiro e dos investimentos especulativos. Segundo Onofre Alves Batista Júnior, a mundialização financeira instaurada buscou garantir a absoluta liberdade de movimentos para o capital e para as empresas, que se transferem com grande facilidade de um território a outro, conforme a sua capacidade de atrair os investidores. E, segundo o autor, as políticas de juros elevados, tendentes a garantir os investidores, corroem a economia privada do país, reduzem os investimentos públicos, freiam o crescimento econômico, geram desemprego e tendem a agravar o problema da concentração de renda, acentuando a desigualdade social10.

Os fluxos internacionais de capital e informação, bem como outras inovações tecnológicas e novas formas de organização

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produtiva são fatores que contribuíram para possibilitar o deslocamento de plantas produtivas pelo globo, aumentando ainda mais a mobilidade das empresas transnacionais, que assim conseguem controlar o trabalho sem a necessidade de concentrar os trabalhadores em um só local.

Com efeito, como observa Noé de Medeiros, as empresas transnacionais buscam atividades de maior lucro a menor custo, contribuindo para um novo processo de divisão inter-nacional do trabalho e especialização tecnológica e produtiva. Isso aumenta a interdependência entre os países e potencializa seu desenvolvimento desigual, já que o desenvolvimento da economia dos países sede das empresas transnacionais ocorre às custas do atraso e subdesenvolvimento dos países em que são instaladas suas filiais11.

A globalização econômica favoreceu, assim, o aprofundamento de estruturas de dominação de economias nacionais pelo capital financeiro especulativo e por empresas multinacionais, que se sentem livres para transitar pelo globo conforme as vantagens e apoios oferecidos pelos governos locais.

Nesse...

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