Poder de reforma da constituição estatal num contexto supranacional: o caso europeu

AutorHugo César Araújo de Gusmão
Páginas130-142

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Introdução

As consequências da integração europeia revelam-se de tal forma impactantes no âmbito do Direito Constitucional, ao ponto de exigir uma ponderação cuidadosa da atual amplitude teórica de suas categorias. 1Esta realidade torna-se ainda mais aguda na medida em que descortina uma crise jurídico-conceitual em face do desenvolvimento de um constitucionalismo europeu livre do insulamento estatal e plenamente autónomo, ainda que profundamente relacionado com as realidades constitucionais nacionais. Ao mesmo tempo, assomam fenómenos, no âmbito europeu, que buscam ativamente o auxílio teórico de categorias desenvolvidas em consonância com a realidade estatal. Daí que uma abertura cognoscitiva deva, se não lograr a precedência, proporcionar uma dimensão explicativa para muitas das aberturas normativas que já permeiam a relação entre o Direito Comunitário e as constituições nacionais. Estas últimas já sujeitas ao questionamento sobre sua passividade ante tais fenómenos, em que medida eventuais modificações por eles ensejadas as atingem e, sendo o caso, como devem se modificar para absorver, de uma forma mais adequada, os impactos que estas mudanças provocam. Estas perguntas convergem, inevitavelmente, para o tema reforma da constituição.

É este âmbito da Teoria da Constituição, precisamente no que concerne à sua relação com o fenómeno da integração europeia, que constitui o objeto deste artigo. O objetivo geral, aqui perseguido, será o de efetuar uma análise das consequências da integração europeia sobre a dimensão da reforma constitucional. Para alcançá-lo, parte-se da seguinte pergunta problematizante: é possível deduzir uma reestruturação teórica do poder de reforma constitucional à luz do avanço deste processo de integração europeia e de sua interação com a Constituição nacional? A partir desta pergunta, torna-se possível elaborar uma hipótese de trabalho: o processo de integração europeia exerce uma pressão sobre a dimensão da reforma constitucional, suscitando o advento de uma categoria que serve à finalidade de conferir significado a modificações nas constituições nacionais advindas da dimensão normativa comunitária, assumindo um perfil de um autêntico poder constituinte derivado comunitário.

A configuração desta categoria, incomodamente híbrida, porém inevitável, indica a necessidade de reconstrução das ideias jurídicas em face dos instigantes fenómenos internacionais contemporâneos. Espera-se que, ao final deste trabalho, tenha-se contribuído para tanto e proporcionado alguma pequena contribuição para o aperfeiçoamento dos questionamentos no âmbito do tema aqui tratado.

1. Rumo à "terra incógnita": integração europeia e crise da dimensão constituinte

Com uma complexa estrutura institucional, a partir de meados da década de oitenta, o processo de integração do Velho Continente assumiu uma posição de vanguarda no cenário internacional, revelando-se tão imprescindível quanto problemático para os respectivos Estados-Membros. As fissuras teóricas nas categorias do Direito Constitucional, em especial no âmbito do Poder Constituinte e da reforma constitucional, radicam, por seu turno, em abordagens que antecedem, em algumas décadas, o vertiginoso desenvolvimento da União Europeia a partir do Tratado de Maastricht. Tais fissuras revelam um gradativo processo de europeização do Direito Constitucional nacional capaz Page 131 de, não muito tempo depois, provocar câmbios de profundo impacto neste ramo dogmático "(...) por el mero hecho de tan sólo dejar de considerar recíprocamente como extranjeros a los Estados europeos entre si." 2

Gestado e desenvolvido num momento histórico no qual as relações internacionais se aprofundam e a democratização dos Estados europeus se consolida, o processo de integração avança dialeticamente, influenciando e sofrendo influência de ambos os fenómenos. 3 A aglutinação, numa mesma dimensão político-económica, de diversos Estados democráticos de direito suscitou a inevitabilidade de que o processo de integração se visse imerso num diálogo normativo intenso com a dimensão constitucional destes.

Este diálogo, no entanto, não esteve, nem está, isento de sérias tensões. A manifestação intermitente destas tem envolvido, nas últimas três décadas, a imperatividade do desenvolvimento de mecanismos jurídicos de controle do poder político no âmbito supraestatal europeu. Isto porque, sem tais controles, o processo de integração carregaria, na verdade, um contraponto às premissas da globalização. Gerar-se-ia um contexto no qual os Estados-Membros se tornariam aptos a utilizar seu poder exterior para levar a cabo, livres de um controle democrático eficaz e da cobrança de responsabilidade política devida, o exercício de competências constitucionais transferidas para uma entidade conduzida, no final das contas, pelos seus respectivos poderes executivos. 4 Isto significaria, paradoxalmente, a hipertrofia do Estado através da atuação de uma entidade supraestatal e, portanto, o fortalecimento, em vez da relativização, da soberania. 5

Porém, se o robustecimento do Estado e a consolidação do poder de suas elites políticas receberam impulso em virtude do caráter internacionalista que, durante muito tempo, desejou-se conferir, com exclusividade, ao processo de integração europeu, 6 a urgência em fazer avançar esta integração, sobretudo após o Tratado de Maastricht, conferiu relevo à necessidade de adoção de mecanismos de controles na dimensão político-normativa comunitária. Afortunadamente, este é o dilema enfrentado diante de qualquer tentativa de expandir o poder e a soberania do Estado através do aprofundamento da integração: o avanço deste processo acaba, inevitavelmente, se imiscuindo na dimensão constitucional. Prova disso é que, a partir de Maastricht, os argumentos em prol da natureza puramente internacional deste processo têm revelado uma crescente carência explicativa ante fenómenos que, por outro lado, só se justificariam através do reconhecimento da razão inerente àqueles em favor de sua natureza constitucional. Esta ambivalência analítica, que se vê refletida na dicotomia Estados-Membros/cidadãos, no processo decisório europeu, acentuou-se. Algo visível diante da manifestação democrática que, na França e na Holanda, pós em xeque-mate a ratificação levada a cabo em dezoito dos vinte e cinco Estados que compunham a União, conduzindo ao fracasso do Tratado constitucional de 2004. Destarte, na medida em que avança o processo de integração, apresentam-se problemas prementes que só poderão ser enfrentados pela via constitucional. Por isto, mesmo representando um golpe para esta perspectiva e configurando-se como um revés para sanar as inquietações e as contradições que assomam diante da reticência em assumir em definitivo o caráter constitucional do processo de integração, o advento do Tratado de Lisboa não provocou sua supressão, pois não poderia fazê-lo sem implicar um grave e irremediável retrocesso.

Esta hesitação configura-se precisamente como o nascedouro dos grandes problemas teóricos que pairam sobre a ciência constitucional europeia contemporânea. Por um lado, no âmbito do processo de integração, assomam fatos que denunciam a apropriação da terminologia usada pelo Direito Constitucional, ensejando um discurso que dispõe de elementos caracterizadores deste ramo dogmático como o termo "Constituição", ou princípios como o de supremacia normativa. 7 Por outro lado, não é possível deduzir, em relação a categorias afeitas ao Direito Constitucional, adequada amplitude teórica ou suficiente flexibilidade para abarcar estes novos fenómenos sem uma revolução nos fundamentos do conhecimento jurídico-constitucional. Em face deste contexto, os questionamentos são perturbadores: seria possível, afinal de contas, referir-se a um poder constituinte europeu, mantendo incólume os fundamentos teóricos do Direito Constitucional? Por outro lado, se não se trata do advento de um fenómeno constituinte originário, qual a natureza do quadro normativo que, ao derivar da esfera comunitária, atinge e modifica a Constituição nacional?

Embora não reste dúvida de que o paradigma vigente no constitucionalismo contemporâneo ainda seja presidido pela supremacia da Constituição nacional, não soa absurdo indagar acerca da natureza monolítica da força vinculante da Constituição nacional e de sua precedência normativa. Esta percepção se justifica diante do impacto da institucionalização da dimensão internacional sobre as funções e a Page 132 identidade do Estado Constitucional 8 e do esvaziamento da exclusividade político-normativa deste em face de uma pluralidade de fontes correlatas, embora claramente distintas. Por conseguinte, dada a seminal relação existente entre Constituição e Estado 9, não surpreende que todo este contexto incida de forma contundente sobre a natureza da dimensão constituinte. 10 Isto porque, como categoria que proporciona, no plano interno, critérios para a delimitação do caráter constitucional ou infraconstitucional das normas no quadro das fontes do Direito, e porque assentado na capacidade do Estado de se estruturar com independência de potências estrangeiras, o poder constituinte representa um pressuposto imprescindível para a formalização da soberania. A defesa de sua relevância só expressa coerência na medida em que o objeto que deriva do seu exercício, a Constituição, esteja dotado...

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