A Reforma Previdenciária no Governo Lula

AutorPaulo Fernando Mohn e Souza
Páginas455-483

Paulo Fernando Mohn e Souza. Consultor legislativo do Senado Federal, na área de Direito Constitucional, Administrativo e Eleitoral. Bacharel em Direito e em Administração de Empresas. Pós-graduado em Direito Público, pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Mestrando do Programa de Mestrado em Direito do UniCEUB, área de concentração Direito e Políticas Públicas. E-mail: mohn@senado.gov.br

Page 455

Introdução

A Constituição Federal de 1988 integrou as áreas de previdência, saúde e assistência sob a rubrica da seguridade social, para consolidar mecanismos de financiamento e estabelecer um modelo de gestão capaz de tratar as especificidades de cada área, mas manter um espírito geral de proteção universal, democrática, distributiva e não-estigmatizadora (VIANNA, 1999). Entretanto, essa integração jamais ocorreu, efetivamente, por diversas razões. Entre elas, destaca-se a conjuntura político-econômica de recessão, déficit público, inflação e crise fiscal. Com isso, as agências multilaterais de crédito passaram a demandar o enxugamento do Estado e sua retração na oferta de benefícios e serviços coletivos.

As políticas de saúde, assistência e previdência social tomaram caminhos apartados. Para Monteiro Neto (2003, p. 223), a separação entre previdência e assistência social ajuda a dimensionar os problemas e permite à sociedade estabelecer com mais clareza suas prioridades. Isso porque, afirma, na previdência os participantes pagam para ter acesso aos benefícios, enquanto na assistência social os benefícios são oferecidos sem contrapartida àqueles de menor capacidade contributiva, inclusive para oferecer-lhes renda mínima.

O isolamento da previdência social embute uma perspectiva de reforço ao modelo de seguros que sustentou sua origem. Em sentido contrário, considerá-la de forma integrada à seguridade social significaria reconhecê-la, para além de um seguro individual, como uma política social, como uma parte integrante de um sistema de proteção social. Acrescenta Soares (2003, p. 118) que esse sistema de proteção social seria mais amplo e inclusivo, no qual os benefícios fossem universalizados e superassem a visão securitária da equivalência contributiva, para adotá-la não só conforme a contribuição, mas também de acordo com aPage 456 necessidade. Desse modo, um sistema baseado no seguro apenas serviria para reproduzir a profunda desigualdade do mercado de trabalho em termos de oportunidades e salários, além de excluir quem não conseguisse inserir-se no mercado formal. Contudo, Boschetti (2003, p. 27) observa que, depois de decorrida mais de década e meia da promulgação da Constituição Federal de 1988, a seguridade social ainda não havia sido implementada como nela concebida, e as políticas que a integram continuavam a ser executadas de forma autônoma e desvinculada.

Fato é que a previdência transformou-se em um dos grandes motes das chamadas reformas estruturais, a partir da década de 1990 e nunca foi discutida, no âmbito das reformas constitucionais, de modo integrado à perspectiva da seguridade social. Desde a Reforma conduzida no decorrer do primeiro mandato Governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso, por meio da Emenda Constitucional nº 20, de 1998, verifica-se a tendência de restringir a seguridade social à sua dimensão previdenciária.

Vianna (1999, 1976) identifica entre “as armas do abate” da seguridade social a despolitização do debate sobre o tema, que enfoca a questão apenas pelo viés técnico e superdimensiona os aspectos fiscais e demográficos. Com isso, o Estado imprime caráter especializado à política pública previdenciária, cujo debate apresenta controvérsia e baixo grau de consenso entre os interessados, gerando decisões aparentemente neutras. Nisso, ficam desprezadas as vertentes da integração social, da solidariedade e do bem-estar. A previdência social assume posição destacada, nesse caso, não só pelo volume dos recursos envolvidos, mas também pelos interesses que em torno dela se articulam. Os usuários da assistência social e da saúde pública não têm condição de vocalização de suas demandas, não constituem grupos de pressão. Ao contrário, os interesses na previdência social envolvem não só aposentados e pensionistas, mas também sindicatos, federações e confederações patronais e dos trabalhadores, centrais sindicais, empregados, servidores públicos e, mais recentemente, os poderosos fundos de pensão.

Para Miranda (1999, p. 137), a discussão em torno da previdência tem sido palco de enormes confusões, algumas vezes involuntárias, outras deliberadas, tanto assim que, por vezes, “tenta-se apresentar o assunto como uma questão meramente técnica em que a opção a tomar é fruto de uma razão quase aritmética e que somente há um caminho possível, inadiável e imutável”. Nesse contexto é que a questão do déficit fiscal tem sido reiteradamente utilizada como justificativa de reformas inadiáveis da previdência social. Outra argumentação recorrente é a acelerada alteração do perfil demográfico brasileiro, decorrente do aumento do número de pessoas idosas em razão da diminuição da taxa de natalidade e do aumento daPage 457 expectativa de sobrevida da população. Com isso, mal termina uma Reforma, já se especula em quanto tempo virá a próxima, por ter sido a anterior insuficiente para conferir equilíbrio ao sistema. Contudo, é preciso lembrar que nem a seguridade nem a previdência são problemas eminentemente técnicos, que possam ser reduzidos a aspectos de natureza fiscal ou demográfica. O ambiente político está imbricado e condiciona o processo decisório acerca do modelo do sistema previdenciário.

O presente artigo tem por objetivo descrever e analisar a Reforma da Previdência Social empreendida pelo Congresso Nacional por iniciativa do Governo do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva (2003/2006), de modo, inclusive, a aclarar os aspectos técnicos nela embutidos. Essa Reforma desdobrou-se em duas Emendas Constitucionais (EC). A primeira delas, a Emenda Constitucional nº 41, de 19 de dezembro de 2003, foi fruto da iniciativa do Poder Executivo, que enviou a proposta ao Congresso Nacional logo no início do Governo, em 30 de abril de 2003. Após oito meses de tramitação, a proposição foi aprovada, guardando coerência, em linhas gerais, com a sugestão governamental.

Entretanto, o Governo e sua base de apoio parlamentar tiveram de construir, no Senado Federal, um acordo com a oposição, que resultou na iniciativa senatorial de uma nova proposta de emenda à Constituição, aprovada na Casa em conjunto com a anterior, e remetida à Câmara dos Deputados, contendo ajustes no texto encaminhado à promulgação e novas disposições. Após um ano e meio de tramitação, foi promulgada e publicada a Emenda Constitucional nº 47, de 5 de julho de 2005.

Tais Emendas Constitucionais aprofundaram as alterações promovidas pelo Congresso Nacional no Governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso. Por isso, este artigo inicia por descrever as características da Emenda Constitucional nº 20, de 15 de dezembro de 1998, que serviu de antecedente para a Reforma empreendida no Governo Lula, com o objetivo de mostrar o contexto e as tendências que se apresentavam desde aquela época. Em seguida, são dedicadas seções separadas para analisar, com a especificidade necessária, os impactos das alterações promovidas, respectivamente, pelas Emendas Constitucionais nº 41, de 2003, e nº 47, de 2005. Por fim, conclui-se com breves considerações finais, nas quais se procura desvelar os resultados da Reforma constitucional do sistema previdenciário brasileiro.

Page 458

Antecedente: a emenda constitucional n 20, de 1998

A primeira providência, ao tratarmos do complexo sistema previdenciário brasileiro, é procurar compreender os regimes que o compõe. Para tanto, adotamos, com adaptações, as classificações de Modesto (2004, p. 22) e Barroso (2004, p. 52-3). O sistema previdenciário é constituído de dois subsistemas básicos: o público e o privado.

O subsistema público, de caráter institucional (não contratual), é subdivido em: a) Regime Geral de Previdência Social (RGPS), gerido pelo Instituto Nacional de Seguro Social (INSS) e aplicável à generalidade dos empregados privados e públicos, regidos pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), e segurados voluntários; e b) os Regimes Próprios de Previdência Social (RPPS), organizados em cada um dos entes federados (União, estados, Distrito Federal e municípios), aplicáveis aos servidores públicos, titulares de cargo efetivo, e aos membros de poder. Ressalte-se que os militares têm um regime próprio de previdência. O subsistema privado, de natureza contratual, facultativa e complementar, é subdividido em previdência complementar aberta, administrada por bancos e sociedades seguradoras, e previdência complementar fechada, administrada por fundos de pensão.

A questão previdenciária ganhou maior importância a partir do Plano Real, quando sua dimensão tornou-se mais clara e seu equacionamento financeiro mais difícil, além da exigência de elevados superávits primários nas contas públicas (GUERZONI FILHO, 2004, p. 148). Logo no...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT