Reflexos da teoria contratual contemporânea na resilição unilateral da representação comercial

AutorSérgio Botrel
Páginas39-51

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1. A representação comercial como elemento dos "centros de cooperação empresarial"

Há algum tempo a sobrevivência dos agentes económicos no mercado pressupõe a organização otimizada dos fatores de produção, de maneira que no cálculo empresarial estão envolvidos não só elementos económicos, mas também jurídicos.

As modificações abruptas e cada vez mais velozes no ambiente económico, o aparecimento de novas tecnologias, que num piscar de olhos tornam a mercadoria ou o serviço oferecido pelo empresário verdadeiramente obsoleto, são algumas das externalidades1 que exigem do agente económico a formação de verdadeiros "centros de cooperação", concretizados por meio de contratações das mais diversas naturezas,2 algumas delas desprovidas de regulamentação especial (como sói ocorrer com o factoring) e outras com dedicação legisla-tória exclusiva (é o caso da representação comercial).

Da mesma forma, a especialização das atividades económicas impossibilita o agente de centralizar todas as fases componentes da cadeia de produção, de modo que a otimização dos resultados pressupõe contratações setorizadas e flexíveis,3 a fim de

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adaptar a organização empresarial à metamorfose mercadológica.

E dentre as contratações integrantes dos "centros de cooperação", a representação comercial chama especial atenção, porquanto mediante a utilização deste expediente jurídico-econômico o empresário consegue se aproximar de um número indeterminado de clientes potenciais, agregando valor à sua empresa por meio de outro agente económico, o qual tem interesse na maximização desta aproximação, haja vista ser remunerado com base nos resultados dela advindos.

Deveras, a decisão de contratar a representação comercial não é uma decisão inocente do empresário,4 haja vista ser consequência, na grande maioria das vezes, de um minucioso planejamento econômico-jurídico. Isto porque a contratação de representantes comerciais é extremamente mais eficiente5 do que a contratação de empregados: primeiro, porque a remuneração (comissão) dos representantes comerciais é calculada com base no resultado da representação, de maneira que o representado acaba conseguindo dividir os riscos de sua atividade com os representantes comerciais, haja vista que não havendo proveito económico advindo da representação, a remuneração não é, via de regra, devida; ou-trossim, considerando a autonomia formal dos representantes comerciais (declarada expressamente por lei — art. 1°, da Lei n. 4.886/1965), o vínculo empregatício e os encargos dele decorrentes restam afastados, o que desonera em demasia a empresa do representado.

Enquanto instituto otimizador dos resultados empresariais, a representação comercial tem proporcionado o desenvolvimento de várias atividades e, com certa frequência, possibilitado que os representados alcancem resultados verdadeiramente inesperados.

Mas em que pese os fatores positivos até aqui singelamente noticiados, há de serem registrados os abusos evidenciados nas relações existentes entre representantes e representados, mormente quando a exclusividade de representação é exigida por estes últimos, merecendo serem postos em destaque os reflexos da teoria contratual contemporânea nas situações sob análise (abuso dos representados).

2. Breves notas sobre a representação comercial e sua regulamentação

A atividade desenvolvida pelos representantes comerciais é regulada pela Lei n. 4.886/1965, a qual sofreu alterações advindas da Lei n. 8.420, de 8 de maio de 1992. Com efeito, o art. 1° da lei especial mencionada traça as características desta atividade, dispondo que "exerce a representação comercial autónoma a pessoa jurídica ou física, sem relação de emprego, que desempenha, em caráter não eventual, por conta de uma ou mais pessoas, a mediação para a realização de negócios mercantis, agenciando proposta ou pedidos, para transmiti-los aos representados, praticando ou não atos relacionados com a execução dos negócios".

De se notar que a regulamentação da atividade desenvolvida pelos representantes comerciais é fruto dos abusos perpetrados pelos representados, os quais, depois de obtida a aproximação junto aos consumidores de seus produtos ou serviços, realizada por meio dos representantes, "denunciavam"6 o contrato de representação — na

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grande maioria das vezes celebrado por prazo indeterminado — sem indenizar estes últimos pela "mais-valia" acrescida aos seus negócios.

Como já advertia Rubens Requião "a Constituição proclama que o trabalho é uma obrigação social. E sendo obrigação social merece, consequentemente, seja qual for a sua natureza, a proteção do Estado, através da lei. O trabalhador assalariado tem a tutela de seus direitos definidos na legislação social, para cuja aplicação se criaram os tribunais especiais de justiça. O cientista, o literato, o trabalhador intelectual, têm a proteção de seus direitos autorais, tutelados pela lei civil, ou de suas invenções protegidas pelos preceitos do Código de Propriedade Industrial. As empresas capitalistas têm a proteção de seus direitos contra a concorrência desleal. Em todos os setores o poder público tutela o trabalho assalariado ou empresarial. Faltava, apenas igual proteção ao representante comercial, que era um verdadeiro pária, marginal do direito".7

Deveras, a natureza social e de ordem pública da legislação em comento foi reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RE 81.128, merecendo destaque, neste diapasão, a inderrogabilidade e irrenunciabilidade dos direitos garantidos à parte vulnerável e hipossuficiente da relação jurídica em análise.

Aliás, basta examinar a norma do art. 44 da Lei n. 4.886/1965 e constatar que o legislador conferiu ao crédito dos representantes comerciais a mesma natureza dos créditos trabalhistas, em caso de falência do representado. Daí ser inegável não só o referido caráter social e de ordem pública das normas que disciplinam as atividades dos representantes comerciais, como também a natureza alimentícia do seu crédito.

Dentre os dispositivos da lei especial em exame, alguns chamam atenção, por evidenciarem o intento de se extirpar o abu-so dos representados e sua tentativa de locupletamento às custas da atividade desenvolvida pelos representantes. É o que sói ocorrer com relação ao valor mínimo da indenização devida ao representante comercial pela denúncia injustificada do contrato pactuado por prazo indeterminado, prescrevendo a norma do art. 27, alínea "j", que o montante ressarcitório não poderá ser inferior a 1/12 (um doze avos) do total da retribuição auferida durante o tempo em que exerceu a representação.

Trata-se do valor mínimo, legalmente imposto, nada impedindo que o representante comercial pleiteie indenização suplementar, sendo certo que nesta hipótese compete a ele comprovar que os prejuízos suportados ultrapassam o mínimo legal.

Com efeito, cumulativamente ao valor tarifado nos moldes do dispositivo comentado, estabelece o art. 34 da lei especial que a denúncia injustificada obriga o denunciante à concessão de aviso-prévio, com antecedência mínima de 30 (trinta) dias, ou ao pagamento de importância igual a um terço das comissões auferidas pelo representante, nos três meses anteriores.

Na hipótese de o contrato ter sido pactuado a prazo certo, estabelece o § 1- do art. 27 que a indenização corresponderá à importância equivalente à média mensal da retribuição auferida até a data da extinção do vínculo contratual, multiplicada pela metade dos meses resultantes do prazo contratual.

Outrossim, importa revelar que a prorrogação tácita ou expressa da contratação inicialmente pactuada a prazo certo convola sua natureza temporal em por prazo indeterminado, considerando-se por prazo indeterminado todo contrato que suceder, dentro de seis meses, a outro contrato, com ou sem determinação de prazo. Objetiva-se, com este regramento, coibir a prática maliciosa dos representados, no sentido de realizarem contratações de representação comercial por prazos curtos, renováveis, sucessivamente, por igual prazo, intentan-

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do evitar, desse modo, a contagem da totalidade do prazo da representação.

Por fim, não se pode perder de vista a aplicação, aos contratos de representação comercial, da regra geral contida no parágrafo único, do art. 473 do CC/2002, no sentido de que dada a natureza do contrato, se uma das partes houver feito investimentos consideráveis para a sua execução, a denúncia unilateral só produzirá efeito depois de transcorrido prazo compatível com a natureza e vulto dos investimentos. Em que pese a norma em análise não compor a legislação especial da representação comercial, nada impede sua aplicação, haja vista inexistir qualquer incompatibilidade, neste caso, da "lei geral" (Código Civil) com a "lei especial" (Lei n. 4.886/1965).

Aliás, muito pelo contrário, na medida em que o dispositivo legal mencionado possibilita o amparo do representante comercial que, após adaptar sua organização empresarial às exigências do representado (o que, em regra, importa em custos elevados), recebe a notícia de que o vínculo obri-gacional encontra-se dissolvido, sem obter qualquer justificação da decisão deste último.

A rigor, considerando a manipulação da empresa do representante, pelo representado, a denúncia injustificada pode afigurar-se como verdadeiro "abuso de poder", importando revelar, ainda que singelamente, o controle externo muitas vezes exercido pelos representados.

3. O "controle externo"...

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