Os reflexos da Constituição Federal de 1988 sobre o Direito Privado

AutorRodolpho Cézar Aquilino Bacchi; André Luiz Torres Yannes
Páginas59-93

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I Introdução

A Constituição Cidadã12, assim denominada pelo então Presidente da Assembléia Nacional Constituinte, Ulysses Guimarães, inaugurou um novo período jurídico-constitucional no país, restaurando o Estado Democrático de Direito, através da instituição de um rol de direitos e garantias individuais. Nos dizeres do “Senhor Constituinte”, como ficou conhecido o deputado, em entrevista ao Jornal Zero Hora, a Constituição de 1988 foi uma “Carta feita com amor e sem medo”.3

A Assembléia Nacional Constituinte, composta por 559 congressistas, foi instalada em 1º de fevereiro de 1987, tendo estendido seus trabalhos por dezoito meses, e em 5 de outubro de 1988 foi promulgada a atual Constituição Brasileira.4 Foi a primeira Constituição na história republicana a aceitar a elaboração de emendas populares, exigindoPage 60 para tanto a assinatura de 3 mil eleitores e apresentação, no mínimo, de três entidades associativas.

A vigente Constituição, segundo os historiadores e cientistas políticos, encerrou um ciclo de instabilidade política da República à qual se somaram sete dissoluções da Câmara Federal e 21 anos de Ditadura Miitar. Após esse período ditatorial e da Campanha das Diretas-Já, que cobrava a instituição de eleições diretas em nosso país, a nação clamava pela elaboração de uma nova Constituição que promovesse a estabilidade política e que tutelasse os direitos e garantias individuais, tão aviltados por esse regime.5

No que concerne a alteração do texto constitucional vigente, duas foram as formas estabelecidas, quais sejam, as Emendas de reforma e as de revisão. No total, seis Emendas Constitucionais de Revisão já foram realizadas, na forma do art. 3º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, além de 56 Emendas de Reforma do texto constitucional.

No presente estudo, pretendemos expor os principais reflexos do texto constitucional sobre o Direito Privado, debatendo alguns de seus aspectos mais importantes.

II Princípio da Dignidade da Pessoa Humana

Consta no Preâmbulo da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão que a “dignidade inerente a todos os membros da família humana é fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo”.

Com base nessa premissa, Constituições em várias partes do mundo incorporaram esse princípio. No caso brasileiro, isso aconteceu graças ao art. 1º, III da Constituição de 1988, cujo objetivo foi o de realizar um profundo processo de redemocratização, pois até 1988 vivíamos sob os auspícios de um governo ditatorial. O princípio da Dignidade da Pessoa Humana se irradia à todos os campos do ordenamento jurídico pátrio, não sendo diferente do direito privado.

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A doutrina pátria não chegou ainda a um consenso acerca de um conceito ideal para esse princípio. Exporemos, neste estudo, as idéias de alguns doutrinadores, destacando-se o ilustre prof. Miguel Reale, que construiu três concepções para a Dignidade da Pessoa Humana6, ou seja, Individualismo, Transpersonalismo e Personalismo.

Inicialmente, esse princípio se caracterizaria por ter como ponto de partida o indivíduo, isto é, cada homem ao cuidar dos seus interesses protege e realiza, indiretamente, os interesses coletivos. Essa concepção estaria ligada ao liberalismo burguês, sendo uma forma de se entender os direitos fundamentais. Esses direitos por serem anteriores à criação do Estado constituiriam um limite ao próprio, que não deve se intrometer na vida social. São os chamados direitos contra o Estado, como “esfera de autonomia a se preservar da intervenção deste7. Para Canotilho, os direitos em questão, seriam denominados de direitos de autonomia e direitos de defesa”.8

Por outro lado, Canotilho e Reale compartilham da idéia de que a lei deverá ser interpretada com a finalidade de salvaguardar a autonomia do indivíduo, preservando-o das interferências do Poder Público, onde num conflito indivíduo versus Estado, o primeiro prevaleceria.

Na segunda concepção ocorreria o contrário, ou seja, os direitos fundamentais seriam salvaguardados na realização dos bens coletivos. Na ocorrência de um conflito entre o bem do indivíduo e o bem do todo devem prevalecer os valores coletivos. A Dignidade Humana seria, assim, realizada em âmbito coletivo. Um exemplo categórico dessa concepção seria a doutrina marxista, que criticou a concepção burguesa de direitos do homem, caracterizando esta como “o egoísmo do homem, deste como membro da sociedade burguesa, isto é, do indivíduo voltado para si mesmo, para seu interesse particular, em sua arbitrariedade privada e dissociada da comunidade”.9

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Nesse passo, para Reale10, a conseqüência direta dessa concepção seria uma tendência na interpretação do Direito limitando a liberdade em favor da igualdade, tendendo a identificar os interesses individuais com os da sociedade, que privilegia estes em detrimento daqueles.

A terceira concepção nega as duas primeiras, quais sejam, a preponderância do indivíduo sobre a sociedade (a chamada concepção individualistaburguesa), bem como a da subordinação do indivíduo aos interesses da coletividade (a chamada concepção transpersonalista). Nessa corrente tentar-se-ia a compatibilização dos valores individuais e valores coletivos, refletindo em não se falar aprioristicamente numa prevalência do indivíduo sobre o todo, ou vice-versa. Deve-se buscar de acordo com as particularidades do caso uma solução que possa compatibilizar os princípios, ou dar prevalência de um sobre o outro.

Todavia, se defende que a primazia do valor coletivo não deve ferir, sacrificar o valor da pessoa.“A pessoa é assim um minimun ao qual o Estado, ou qualquer outra instituição, não pode ultrapassar”.11

Nos ideários de Kant12, a Dignidade Humana refletiria a tentativa de elevação do Homem a um fim em si mesmo, não devendo ser tratado como um meio. O ser humano, portanto, ao preceder o Direito e o Estado faz com que esses apenas se justifiquem em razão dele.

Após a análise das teses dos autores supracitados, poderíamos chegar a conclusão acerca do referido princípio. Ou seja, a dignidade humana está umbilicalmente ligada à idéia de fazer parte da natureza humana, e concedida a todos os indivíduos dotados de inteligência e racionalidade, não se importando qualquer juízo de valor acerca de sexo, cor e religião.

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Por último e não menos importante, devemos citar o posicionamento do ilustre autor Uadi Lamêgo Bulos13, que conceitua o princípio “como um limite substancial transcendente ao poder constituinte derivado, decorrendo a prescrição da inviolabilidade dos direitos inerentes a personalidade humana”.

III Funções do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana

O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana possui uma série de funções. Em primeiro lugar, seria a de conferir legitimidade ética à Constituição, sendo, assim o núcleo essencial dos direitos fundamentais, com a exata função de concretizá-los. Daí dizer-se que os direitos fundamentais ocupam grau superior no nosso ordenamento, por não poderem ser suprimidos pelo Poder Constituinte Derivado Reformador de Emenda, ante a sua colocação no rol das cláusulas pétreas do art. 60, §4º da Carta da República. De acordo com a classificação do professor Nelson de Souza Sampaio14, os direitos fundamentais constituiriam, os chamados Limites Materiais Explícitos ao referido Poder.

Com base em tal premissa, ocorre uma divergência na doutrina, existindo aqueles que defendem a tese de que o Princípio Democrático exerceria esse papel de “pólo magnético” da Constituição. Um dos defensores dessa tese é o Ministro do Supremo Tribunal Federal, Carlos Ayres Britto, do qual, data maxima vênia, somos obrigados a divergir, pois cita em sua obra que, “democracia há de resistir a tantos golpes, porque ela, no fundo, é o verdadeiro ser, a verdadeira alma da Constituição brasileira de 1988”.15 Nesse sentido de divergir, podemos citar Peter Habërle16 que explica que a democracia é uma das premissas do Estado Constitucional, mas a dignidade da pessoa humana por objetivar o pleno desenvolvimento do “ser” constituiria o real centro normativo.

Ainda nessa ótica encontra-se José Afonso da Silva que critica a tese esboçada pelo Ministro do Supremo, ante ao fato do modelo democrático representativo empregado dar preponderância ao sistema partidário, dependendo muito este modelo dosPage 64 programas partidários, refletindo-se na seguinte citação: “(...) os constituintes optaram por um modelo de democracia representativa que tem como sujeitos principais os partidos políticos, que vão ser os protagonistas quase exclusivos do jogo político (...)”.17

Entendemos, ainda, que o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana é o vetor de interpretação da Constituição, por veicular, em sua compreensão, importantíssimos princípios, como por exemplo, o Princípio Republicano, Princípio Federativo, significando, a verdadeira vitória da liberdade contra a opressão. Peter Habërle18 é contundente nesse sentido ao dizer que “O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana é a premissa fundamental de qualquer Estado que se queira dizer Constitucional”, ou seja, a definição de um Estado Democrático de Direito é indissociável desse principio. Podemos dizer, conseqüentemente, que todas as demais premissas do Estado Democrático como divisão dos poderes, direito fundamentais, controles judiciais derivam desse...

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