Reflexões sobre Matrimônio Igualitário: Os Casos de Brasil e Argentina

AutorHenrique Rabello de Carvalho
Páginas65-72

Page 65

I Introdução

Nos últimos anos, observa-se um processo constante de pessoas não heterossexuais que decidem tornar públicas suas uniões, que se caracterizam pelo afeto e como contínuas e duradouras, marcadas pelo desejo de permanência e a construção de um projeto de vida em comum, o que ensejou, conforme a lavra da jurista Maria Berenice Dias, a denominação de uniões homoafetivas1. Como consequência deste fato social, iniciou-se, portanto, uma busca pelo reconhecimento jurídico desta categoria de união, que preenche os requisitos de entidade familiar como se verá adiante.

Assim, na luta pela realização e reconhecimento dos direitos fundamentais das populações da diversidade sexual (ou comumente LGBT ou LGBTI)2, os movimentos sociais têm encontrado parlamentos pouco receptivos à sua demanda, como é o caso brasileiro e, em alguns casos raros, parlamentos que acolhem esta demanda, consubstanciando-as em instrumento normativo, como foi o caso da Argentina. Em ambos os casos, percebe-se um processo de construção destes direitos a partir da interpretação dos tribunais constitucionais e, por outros, o reconhecimento destes direitos na edição de lei por iniciativa do Legislativo.

Dessa forma, é oportuno analisar o reconhecimento jurídico das uniões formadas por pessoas do mesmo sexo sob a perspectiva do direito comparado, em especial os processos jurídicos e sociais ocorridos no Brasil e na Argentina e as estratégias jurídicas desenvolvidas em ambos os casos para a efetivação destes instrumentos normativos. No caso brasileiro, o reconhecimento jurídico das uniões formadas por pessoas do mesmo sexo ocorreu a partir de decisão do Supremo Tribunal Federal em 2011. Na Argentina, de forma diferente, foi autorizado o casamento

Page 66

entre pessoas do mesmo sexo desde 15 de julho de 2010, tornando-se o primeiro país na América Latina a reconhecer esse direito em todo o seu território. Foi também o décimo país a legalizar este tipo de união em todo o mundo.

De forma paulatina, o afeto entre pessoas do mesmo sexo, assim como seus reflexos jurídicos, torna-se tema da agenda contemporânea, por meio das paradas do "orgulho gay", do debate destes temas em audiências públicas, novelas, jornais e demais meios de comunicação, assim como da produção crescente de trabalhos acadêmicos que versam sobre o reconhecimento destes direitos.

Embora não haja norma jurídica expressa reconhecendo as relações entre pessoas do mesmo sexo, tem-se observado o reconhecimento destas uniões por meio da jurisprudência dos tribunais e em al-guns ramos do Direito, como é o caso do Direito Previdenciário. Cumpre destacar que o reconhecimento das uniões estáveis heterossexuais também foram objeto de reprovação e preconceito prima facie, sendo reconhecidas posteriormente pela Constituição Brasileira de 1988:

Art. 226, § 3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.

Importante estabelecer que não cabe ao Direito e ao Estado, como consequência, a discriminação ou a reprovação quanto ao projeto de vida ou livre expressão da personalidade de cada indivíduo, na medida em que a homossexualidade deve ser contextualizada como característica que diz respeito à exclusiva intimidade e vida privada das pessoas.

O conceito de família tem se transformado ao longo das décadas, não sendo mais possível falar somente em um modelo único, e, mais uma vez com Maria Berenice Dias, em um Direito das Famílias3, que possa proteger e reconhecer uma pluralidade de famílias em um contexto de sociedade democrática e diversa.

Conforme a dicção do Código Civil Brasileiro, extrai-se que, para a configuração da união estável4, bastam os requisitos como convivência pública, contínua e duradoura, como objetivo de constituir família. Nesse sentido, indaga-se como poderiam estar os pares formados por pessoas do mesmo sexo alijados do conceito de família, na medida em que não se encontram argumentos jurídicos racionais e plausíveis para promover essa exclusão, seja da categoria jurídica de entidade familiar, seja do regime jurídico da união estável, na proporção em que o afeto e o estabelecimento de um projeto de vida comum são os elementos agregadores e de união desses pares.

Uma interpretação humanista do conceito de família considera não apenas a vinculação biológica, mas também o vínculo socioafetivo e psicológico, assim como a transmissão do patrimônio deixa de ser o foco principal da tutela no direito de família, considerando-se também a função social que a família desempenha na sociedade.

Uma interpretação restritiva do direito de família tende a considerar apenas como família merecedora da tutela estatal, aquela de caráter mono-parental oriunda do matrimônio ou união estável, conforme disposto na Constituição Federal. Ponto importante é que esta interpretação fere os princípios constitucionais da isonomia, dignidade da pessoa humana e da sociedade democrática brasileira, livre e pluralista.

A interpretação extensiva, majoritária na doutrina nacional, aponta que as disposições constitucionais de modo algum exclui as pluralidades de configurações familiares merecedoras de proteção do Estado, sobretudo quando se considera o afeto como elemento fundamental para a construção do conceito de família. A esse respeito:

A doutrina clássica, que exige para o casamento o requisito da diversidade de sexos, não mais se sustenta frente à repersonalização do direito das famílias, que busca assegurar o direito à felicidade calcado nos princípios constitucionais. Segundo Jorge Luiz Medeiros, é preciso garantir o exercício da autonomia privada (garantia dos direitos individuais) e da auto-nomia pública (respeito como sujeitos iguais na atuação pública, sem redução de status ju-

Page 67

rídico de nenhuma espécie por conta de suas diferenças); de liberdade (na escolha da forma de proteção jurídica ao seu afeto) e igualdade (acesso às mesmas proteções que um casal homossexual dispõe), exercitando o constitucional princípio da dignidade da pessoa humana. A discussão sobre a igualdade, liberdade e dignidade que perpassa o tema não se restringe ao tratamento igualitário no atinente às conseqüências jurídicas do casamento, mas à própria concretização do direito de se casar.5

II O afeto como valor jurídico

A institucionalização de fenômenos e práticas sociais pelo Direito reflete a necessidade de positivação dessas práticas com o intuito de promover a segurança jurídica e a proteção de direitos decorrentes dessas práticas sociais. Nesse cenário, o afeto emerge como elemento caracterizador das relações humanas, particularmente nos regimes de casamento e união que se pautam hodiernamente não apenas por convenções sociais e interesses patrimoniais.

Como afirma Luis Edson Fachin:

Em momento algum pode o Direito fe-char-se feito fortaleza para repudiar ou discriminar. O medievo jurídico deve sucumbir à visão mais abrangente da realidade, examinando e debatendo os diversos aspectos jurídicos que emergem das parcerias de convívio e de afeto. Esse é um ponto de partida para desatar alguns ‘nós’ que ignoram os fatos e desconhecem o sentido de refúgio qualificado prioritariamente pelo compromisso sócio-afetivo.6

Nesse sentido, como regulador das atividades humanas e seus reflexos coletivos, cumpre ao Direito reconhecer as configurações diversas de entidade familiar que emergem no seio das sociedades, fruto do amadurecimento da democracia, da liberdade e da autonomia privada, direitos estes protegidos constitucionalmente de forma ampla e cujo respeito e proteção vinculam-se à dignidade da pessoa humana.

Inegável reconhecer, portanto, o afeto como valor jurídico e sua vinculação inexorável a uma interpretação do Direito de Família sob a perspectiva constitucional e dos Direitos Humanos, de onde se extrai a necessidade de tutela deste valor social:

Como cabe ao direito regular a vida - sendo ela uma eterna busca da felicidade -, impossível não reconhecer que o afeto é um valor jurídico merecedor de tutela (...).7

A reconfiguração dos afetos na pós-modernidade, em que milhões de pessoas, em diversas partes do mundo, decidem de forma corajosa viver seu projeto de vida pessoal e a plenitude de sua identidade sexual, aponta para uma reconfiguração doutrinária objetiva, em que se observa a consideração de não somente um modelo único de família a ser tutelado pelo Estado, mas de uma pluralidade de configurações, baseadas não apenas em um comando estatal monolítico, mas, sobretudo, no afeto.

Assim:

Com razão, se o afeto é o que justifica o respeito mútuo, a durabilidade e a solidez, indispensáveis para que as uniões formem uma estrutura familiar (independente do sexo biológico e da orientação de desejo dos seus...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT