Reflexões sobre empresa e economia: o conteúdo jurídico da empresa sob uma análise económica do direito

AutorCássio Machado Cavalli
Páginas250-256

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Introdução

Um dos temas mais desafiantes enfrentados pelos juristas ao longo do século XX e que volta à tona nos albores do século XXI consiste justamente no tema da empresa. O vocábulo empresa, por sua significação polissêmica, serviu às mais diversas teorias que buscavam afirmar o conteúdo jurídico da empresa. Em direito, empresa pode significar pelo menos empresário, atividade e estabelecimento. Desse modo, ao falar-se sobre empresa, está-se a falar sobre diversos aspectos do direito de empresa. Pode-se recorrer à empresa, p. ex., na busca da resposta para a questão da autonomia do direito comercial em face ao direito civil e da unificação do direito privado. Pode-se, também, recorrer à empresa para afirmar-se quem é empresário e, portanto, quem está sujeito ao estatuto do empresário. Por outro lado, a empresa também pode ser utilizada para que se estude o estabelecimento empresarial. O tema da empresa perpassa também o direito concorrencial e o direito do consumidor, e relaciona-se, também, com o direito do trabalho. Enfim, a empresa, no direito contemporâ-neo, assumiu tamanha importância so-cioeconômica que foi chamada por Com-parato de instituição-chave da sociedade1.

Ante essa pluralidade de abordagens possíveis, os juristas disputaram qual a categoria jurídica em que melhor se inseriria o conceito de empresa: se na categoria de pessoa ou na de coisa. Assim, a empresa seria um sujeito, o empresário, ou uma coisa, o estabelecimento, pois, conforme o ângulo pelo qual se a observasse, a empresa assumiria ora as matizes de um sujeito, ora as de um objeto.2 Essa ambivalência do conceito de empresa para o direito decorria do fato de que o conceito económico de empresa se prestava tanto a uma como a outra interpretação.

Com efeito, empresa, para a economia, "é uma unidade económica que produz e

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emprega resultados destinados à cobertura de necessidades alheias, respeitando a economicidade e o equilíbrio financeiro".3 Esta unidade económica é conformada pela reunião dos fatores de produção, pois, empresa, em economia, seria "toda organização de trabalho e de capital tendo como fim a produção de bens ou serviços para troca".4

Em 1943, foi publicado o artigo "Perfis da empresa",5 de autoria de Alberto Asquini, que serviu como um divisor de águas para a questão do conceito jurídico de empresa. Para referido autor, o "conceito económico de empresa é o conceito de um fenómeno poliédrico, o qual tem sob o aspecto jurídico, não um, mas diversos perfis em relação aos diversos elementos que o integram".6 Assim, "defronte ao direito o fenómeno económico de empresa se apresenta como um fenómeno possuidor de diversos aspectos, em relação a diversos elementos que para ele concorrem, o intérprete não deve agir com o preconceito de que o fenómeno económico de empresa deva, forçosamente, entrar num esquema jurídico unitário".7

Desse modo, esvaziou-se a questão do conceito jurídico da empresa, pois afirmou-se que, em direito, o vocábulo empresa ora seria utilizado para significar empresário, aquele que exerce atividade económica organizada, e ora para significar estabelecimento, o complexo de bens organizados pelo empresário para o exercício da atividade, e ora significando a própria atividade económica desenvolvida.8 "Afirmar, porém, que a noção de empresa entrou no novo Código Civil com um determinado significado económico, não quer dizer que a noção económica de empresa seja imediatamente utilizável como noção jurídica."9 Em outras palavras, o conceito económico de empresa é utilizado apenas como um conceito metajurídico para precisar-se os conceitos jurídicos de, empresário, atividade e estabelecimento, os quais possuem como sinónimo o vocábulo empresa. Ademais, atualmente, a empresa é pensada, sobretudo, a partir de seu aspecto subjetivo,

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ou seja, do empresário. "Empresários são propulsores da atividade económica, são os agentes que organizam a produção."10 Por essa razão diz-se que o direito comercial, ao adotar a teoria da empresa, ingressou na denominada fase subjetiva moderna.11

Com efeito, a doutrina dos perfis da empresa professada por Asquini, conquanto tenha posto fim à antiga controvérsia sobre a classificação jurídica da empresa, mediante a clara demonstração de que há em direito o conceito de empresário, de atividade e de estabelecimento, acabou por criar uma cisão entre o direito e a economia justamente num dos pontos mais importantes da economia globalizada: a empresa. É que a busca pelo conceito jurídico de empresa, desde a publicação do célebre artigo, foi superada pela noção de que o conceito de empresa é um conceito metaju-rídico que somente deve interessar ao intérprete na construção de conceitos propriamente jurídicos de empresário, atividade e estabelecimento.

Para Raquel Sztajn, a falta de comunicação entre o direito e a economia "nos sistemas jurídicos de base romano-germâ-nica foi causa de pouca produtividade nas investigações que, se levadas a cabo em conjunto, poderiam ter alcançado soluções mais interessantes e promissoras no sentido de entender e, portanto, avaliar e disciplinar muitas das ações dos operadores económicos".12

Assim, no presente ensaio, preservando as conquistas obtidas pela ciência do direito no que respeita à empresa, como, p. ex., a relevante doutrina dos perfis da empresa, e lançando mão de uma interpretação económica do direito, pela qual se busca compreender institutos jurídicos a partir de uma perspectiva ou lógica própria da ciência económica, buscarei estabelecer novos critérios pelos quais se possa realizar uma aproximação qualificada entre as ciências do direito e da economia para que, enfim, se possa afirmar o conteúdo jurídico próprio da empresa, ou seja, não concluirei que empresa é o empresário (sujeito) ou o estabelecimento (objeto) ou a atividade exercida pelo sujeito, concluirei que há em direito uma categoria jurídica própria para a empresa. Em outras palavras, em direito, com o perdão do pleonasmo, empresa é empresa.

1. Empresa e economia

A teoria económica clássica ensina que o mercado consiste em um sistema económico que funciona de forma independente atendendo apenas aos mecanismos de oferta e procura que atuam na formação do preço.13 Coase, no entanto, observando a atua-ção económica de empresas (firms), percebe que os agentes económicos não atuam diretamente no mercado, pois organizam empresas (firms) pelas quais atuam visando sobretudo escapar dos mecanismos de formação dos preços. A partir daí edifica-se a teoria económica da empresa (theory ofthefirm).

Assim, indaga Coase acerca da empresa: "But in view of the fact that it is usually argued that co-ordination will be done by the price mechanism, why is such organi1 zation necessary? Why are there these 'islands of conscious power'? Outside the firm, price movements direct production, which is coordinated through a series of

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exchange transactions on the market. Within a firrn, these markets transactions are eliminated and in place of the compli-cated market structure with exchange transactions is substituted the entrepre-neurco-ordinator, who directs production. It is clear that these are alternati ve methods of co-ordinating production. Yet, having regard to the fact that if production is regulated by price movements, production could be carried on without any...

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