Reflexões em torno da configuração moderna da corrupção

AutorFlávia Noversa Loureiro
Páginas262-282
D : www.univali.br/periodicos
D: 10.14210/nej.v24n1.p262-282
262
Licença CC BY:
Artigo distribuído sob
os termos Creative
Commons, permite
uso e distribuição
irrestrita em qualquer
meio desde que o
autor credite a fonte
original.
Resumo: A perceção social, aliada aos fenómenos corruptivos, sofreu,
implicativamente, profundas modicações, passando de uma atitude de
tolerância ou indiferença para uma posição de recusa, de denúncia pública e,
mesmo, de algum alarme. Hoje, quando falamos em corrupção, pretendemos
signicar um conjunto fenomenológico muito mais lato, coincidente com aquilo
a que chamamos «perceção social da corrupção». A corrupção está longe
de ter apenas uma dimensão jurídico-criminal, pelo que devemos salientar
igualmente o envidamento de esforços que têm vindo a desenvolver-se
em nível administrativo. A tónica, neste caso, está não já na repressão, mas
sobretudo na prevenção de atos corruptivos. Muitos outros aspetos são
igualmente relevantes quando falamos de prevenção e repressão da
corrupção. Passam pela atitude da sociedade, pelo papel dos media,
pelos meios técnicos e capacidades humanas da investigação criminal,
quando seja caso dela, entre tantos outros fatores. O que nos parece
verdadeiramente intransponível – se bem que não se agure nada fácil
a partir de um enfoque juspenalista – é que compreendamos as múltiplas
e interpenetrantes dimensões do fenómeno, sem o que continuaremos
com vislumbres fragmentários e pouco produtivos da realidade.
Palavras chaves: Corrupção; Estado; Poder público.
REFLEXÕES EM TORNO DA
CONFIGURAÇÃO MODERNA DA
CORRUPÇÃO1*
REFLECTIONS ON THE MODERN CONFIGURATION OF CORRUPTION
Flávia Noversa Loureiro 2**
1 *O presente artigo corresponde, com algumas modicações, àquele que elaboramos para um livro de homenagem
ao Professor Doutor António Cândido de Oliveira, que a Escola de Direito da Universidade do Minho organizou no
momento da sua jubilação. As ideias que aí expendemos são agora retomadas e em alguns aspetos desenvolvidas
– cf. Flávia Noversa Loureiro, “A corrupção e as corrupções: da compreensão do fenómeno à atuação sobre ele”,
in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor António Cândido de Oliveira, Coimbra, Almedina, 2017, pp. 343-
359.
2 Doutora em Direito. Professora Auxiliar da Escola de Direito da Universidade do Minho, Portugal. Investigadora do
JusGov – Centro de Investigação para a Justiça e Governação.
D: 10.14210/nej.v24n1.p262-282
R N E J - E, V. 24 - . 1 - JAN-ABR 2019 263
Abstract: The social perception allied to the corruptive phenomena suffered, implicitly,
profound changes, going from an attitude of tolerance or indifference to a position of
refusal, public denunciation and even some alarm. Today, when we talk about corruption,
it means a much broader phenomenological set, coinciding with what we call “social
perception of corruption”. Corruption is far from having only a legal-criminal dimension,
and we must also point out that efforts are being made at the administrative level. The
emphasis here is not on repression but on the prevention of acts of corruption. Many other
aspects are equally relevant when it comes to prevention and repression of corruption. They
go through the attitude of society, the role of the media, the technical means and human
capacities of criminal investigation, where appropriate, among many other factors. What
we nd truly insurmountable - although it does not seem easy from a jus- tialist approach
- is that we understand the multiple and interpenetrating dimensions of the phenomenon,
without which we will continue with fragmentary and unproductive glimpses of reality.
Keywords: Corruption; State; Public Power.
1. A CORRUPÇÃO, AS CORRUPÇÕES E A PRÉ-COMPREENSÃO DO PROBLEMA
Enquanto fenómeno plural e multifacetado3, a corrupção é muito
frequentemente apresentada como a Hidra de Lerna, monstro temível e de
tantas manifestações quantas as suas cabeças, que se multiplicam sempre que
uma é cortada e a que só um dos trabalhos de Hércules pode pôr cobro. Não
o foi sempre, é certo, mas a verdade é que o nal do século XX trouxe consigo
uma consciencialização sem precedentes a respeito do fenómeno e a corrupção
ocupa hoje um papel central entre as preocupações de Estados, organizações
internacionais e sociedade civil, abandonando-se compreensões primeiras mais
ou menos ingénuas4 que a entendiam como característica especíca de países em
3 Cf., a este propósito, o que já dissemos em Flávia Noversa loureiro, “A Corrupção na Era Global: Reexão
breve sobre o alcance e os limites da intervenção penal”, in Direito na Lusofonia. Cultura, direitos humanos e
globalização, Braga, Escola de Direito da Universidade do Minho, 2016, pp. 161-170. Ver, igualmente, entre nós,
as considerações tecidas por José Mouraz lopes, O Espectro da Corrupção, Coimbra, Almedina, 2011, pp. 27 e
segs.; e por José MaNuel DaMião Da CuNha, “Da Corrupção (do seu enquadramento jurídico no âmbito da tutela
penal dos interesses do Estado. Erros legislativos e lacunas de punibilidade)”, in Direito Penal: Fundamentos
Dogmáticos e Político-Criminais. Homenagem ao Prof. Peter Hünerfeld, Coimbra, Coimbra Editora, 2013, pp.
849-918. Internacionalmente, de entre a vastíssima bibliograa que poderíamos apontar, cf. Clovis DeMarChi, “A
corrupção como entrave à concretização dos direitos humanos no Brasil”, in A Proteção dos Direitos Humanos
face à Criminalidade Económica Globalizada: Atas da Conferência Internacional, Braga, DH-CII, Escola de
Direito da Universidade do Minho, 2017, pp. 9-26; sergio seMiNara, “La Disciplina della Corruzione Pubblica e
Privata in Italia, alla luce degli Strumenti Europei e Internazionali”, in Os Crimes de Fraude e a Corrupção no
Espaço Europeu, Coimbra, Coimbra Editora, 2014, pp. 167-198; rogério gesta leal, Patologias corruptivas nas
relações entre Estado, Administração Pública e Sociedade: causas, consequências e tratamentos, Santa Cruz
do Sul, EDUNISC, 2013, pp. 14-19; alberto vaNNuCCi, “The Mecanisms of Corruption and Anti-Corruption: a Neo-
institutional Perspective”, in Practice Meets Science. Contemporary Anti-Corruption Dialogue, vol. 1: Contributions
to the IACSA 2011, Vienna-Graz, Intersentia, 2012, pp. 69-96; ou susaN rose-aCkerMaN, Corrupção e Governo,
Lisboa, Prefácio, 2002, pp. 19 e segs.
4 Ou, pelo contrário, extraordinariamente dolosas, se não mesmo premeditadas. Vejamos que a defesa destas

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT