Reflexões sobre decisão judicial no Código de Processo Civil de 2015

AutorLorena de Mello Rezende Colnago
CargoMestre em Processo (UFES, 2008). Pós-Graduada em Direito e Processo do Trabalho e Previdenciário (UNIVES, 2005)
Páginas108-122

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1. Introdução

O presente ensaio pretende analisar a alteração que o novo Código de Processo Civil implementa, referente ao conceito e aos elementos das decisões, em especial a sentença, por meio da seguinte redação:

Art. 489. São elementos essenciais da sentença:

I - o relatório, que conterá os nomes das partes, a identificação do caso, com a suma do pedido e da contestação, e o registro das principais ocorrências havidas no andamento do processo;

II - os fundamentos, em que o juiz analisará as questões de fato e de direito;

III - o dispositivo, em que o juiz resolverá as questões principais que as partes lhe submeterem.

§ 1º Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que:

I - se limita a indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo;

II - empregue conceitos jurídicos indeterminados sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso;

III - invoque motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão;

IV - não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, ini rmar a conclusão adotada pelo julgador;

V - se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos;

VI - deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento.

§ 2º No caso de colisão entre normas, o juiz deve justificar o objeto e os critérios gerais da ponderação efetuada, enunciando as razões que autorizam a interferência na norma afastada e as premissas fáticas que fundamentam a conclusão.

§ 3º A decisão judicial deve ser interpretada a partir da conjugação de todos os seus elementos e em conformidade com o princípio da boa-fé.

(...).1

Antes mesmo de analisar a dogmática envol-vida no assunto, por meio do método dedutivo, com a utilização de pesquisa legislativa, jurisprudencial e doutrinária, sendo o marco teórico Elio Fazzalari e Ronald Dworkin, dentre outros jusi lósofos e processualistas.

Será necessário analisar, preliminarmente, o conceito de jurisdição ao longo do desenvolvimento histórico para melhor entender os anseios da sociedade quanto ao controle das decisões judiciais, por meio da motivação. Ao mesmo tempo, analisaremos se a proposta legislativa atende ao projeto constitucional que prevê a duração razoável do processo como direito fundamental.

2. Uma análise crítica do conceito de motivação

Ao longo da história, o homem sempre tentou positivar em leis o regramento social considerado importante para a vida em grupo. A escolha do conteúdo desse regramento social esteve, em todos os tempos, relacionada com os valores culturais de determinada comunidade.

A ideia de igualdade e de liberdade na Antiguidade e na Idade Média esteve marcada pela supremacia de um grupo de pessoas, em geral do sexo masculino e economicamente favorecidas, sobre os demais integrantes da sociedade. A legitimação da dominação exercida era fundamentada em justificativas culturais que se baseavam na ideia de leis naturais ou na tradição. Sob essa ideologia, a dominação, a hegemonia econômica e a estaticidade social foram elementos que fundamentaram os valores tutelados pelos ordenamentos da época

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(tradição, titulação social, liberdade para os iguais), inl uenciando o exercício da jurisdição.

A partir do séc. XV, a sociedade europeia iniciou a conquista de direitos civis e políticos que, interiorizados nas constituições dos Estados Nacionais, modii caram o modelo de organização estatal de absolutista para liberal2.

Uma característica marcante desse Estado foi o respeito incondicional pelas leis em vigor e pelo direito subjetivo, com o mínimo de inter-venção na liberdade individual dos cidadãos, de modo a legitimar e eternizar o status quo social da classe burguesa. A segurança jurídica era mantida por meio do respeito absoluto aos direitos adquiridos e aos direitos do cidadão, das associações e das corporações3. O novo modelo de Estado também inovou na distribuição tripartite e estática do poder em Legislativo, Executivo e Judiciário, inspirada na ideia de república democrática desenvolvida por Montesquieu4.

Como limite ao poder absoluto dos reis, foi desenvolvida a ideia de que o Poder Legislativo deveria ser o legítimo intérprete da vontade do povo, e se assim não o fosse, seu poder seria esvaziado5, pois a segurança jurídica era fundamentada na certeza da aplicação da lei, tal como elaborada. Assim, o Executivo e o Judiciário deveriam adequar-se aos exatos ditames da lei - ideologia que rel etiu sobre todo o estudo processual da época6. Os estudos de Giuseppe Chiovenda, jurista italiano, com inspiração no Código Napoleônico, propiciaram o desenvolvimento dos institutos processuais, por meio de conceitos analíticos, dentre eles, o de jurisdição7.

A ideia de que os particulares somente teriam seus direitos protegidos e garantidos

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com a supremacia da lei, foi uma importante conquista em face do autoritarismo do antigo regime. Por isso, a defesa da esfera de liberdade particular era realizada em uma jurisdição formalista, excessivamente técnica e afastada dos verdadeiros problemas sociais, exercida por um juiz neutro que somente aplicava a lei, sem interpretá-la.

Nesse ínterim, os requisitos de validade da decisão conforme a escrita no art. 238 do Regulamento n. 737 - primeira lei processual brasileira - assim dispunha: "a sentença deve ser clara, summariando o Juiz o pedido e a contestação com os fundamentos respectivos, motivando com precisão o seu julgado, e declarando sob sua responsabilidade a lei, uso ou estylo em que se funda."8

Esse dispositivo legal rel ete o conceito de sentença como ato declarativo do sentido da lei, com inl uência da concepção liberal que dominou por bastante tempo os institutos processuais, destacando-se a expressão: motivando com precisão os fundamentos, o que explicita a preocupação com as razões de decidir do juiz.

No entanto, antes mesmo do Regulamento n. 737 ser promulgado, as Ordenações Manuelinas de 1521, que vigoraram no Brasil por algum tempo, no Livro III, Título 50, § 68, dispunham um mandamento de que todos os magistrados deveriam declarar em suas sentenças "a causa, ou causas, per que se fundam a condenar, ou absolver, ou a coni rmar, ou a revogar, dizendo especii camente o que he, que se prova, e por que causa do feito se fundam a darem suas sentenças"9 demonstrando uma preocupação com as razões de decidir, a fim de que a sociedade pudesse compreender o real alcance da interpretação judicial, em contraponto à tradição medieval de ausência de motivação das decisões10.

O Código de Processo Civil de 1939, que unii cou as legislações processuais estaduais que vigoraram depois do Regulamento n. 737, dispunha sobre requisitos da sentença da seguinte forma, no art. 280: "A sentença, que deverá ser clara e precisa, conterá: I - o relatório; II - os fundamentos de fato e de direito; III - a decisão. Parágrafo único. O relatório mencionará o nome das partes, o pedido, a defesa e o resumo dos respectivos fundamentos"11, sem versar sobre o conceito de decisão propriamente dita, retirando a parte declarativa da lei contida no Regulamento n. 737, o que constituiu um avanço legislativo, mas ainda não doutrinário porque o juiz ainda era concebido como "a boca da lei"12, portanto, de fato, essa declaração da lei estava implícita à atividade jurisdicional.

Com o desenvolvimento econômico, marcado pela Revolução Industrial13, surge um

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novo enfoque da jurisdição, marcado pela inl uência dos direitos sociais, econômicos e culturais, que gradativamente foram sendo positivados no ordenamento jurídico da época. A intervenção da Administração Pública na vida privada14 tornou-se mais marcante, assistindo-se ao aumento da produção legislativa, o que exigiu do Estado uma postura mais ativa como forma de implementar os direitos fundamentais positivados, em especial os sociais15. No entanto, por causa do regime de exceção vigente no país, os avanços em termos de fundamentação jurídica eram gradativos, pois até mesmo a classe da magistratura estava sendo tolhida do poder interpretativo, com a perseguição de vários magistrados, Ministros do Supremo Tribunal Federal, aposentados compulsoriamente16.

Nesse contexto histórico, vigeu o Código de Processo Civil de 1973 com três artigos que merecem destaque sobre a motivação das decisões, que são os arts. 131, 458 e 459:

Art. 131. O juiz apreciará livremente a prova, atendendo aos fatos e circunstâncias constantes dos autos, ainda que não alegados pelas partes; mas deverá indicar, na sentença, os motivos que lhe formaram o convencimento. Art. 458. São requisitos essenciais da sentença:

I - o relatório, que conterá os nomes das partes, a suma do pedido e da resposta do réu, bem como o registro das principais ocorrências havidas no andamento do processo; II - os fundamentos, em que o juiz analisará as questões de fato e de direito;

III - o dispositivo, em que o juiz resolverá as questões, que as partes lhe submeterem. Art. 459. O juiz proferirá a sentença, acolhendo ou rejeitando, no todo ou em parte, o pedido formulado pelo autor. Nos casos de extinção do processo sem julgamento do mérito, o juiz decidirá em forma concisa. Parágrafo único. Quando o autor tiver formulado pedido certo, é vedado ao juiz proferir sentença ilíquida.17

Essas normas exigem a explicitação dos fundamentos que levaram o magistrado a chegar a uma determinada conclusão, mas que não precisam estar nas ai rmações das partes, podendo ser utilizado um argumento externo aos autos, desde que explicitado.

A Constituição da República de 1988 representou uma virada copernicana no ordenamento jurídico...

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