Reflexões sobre o ônus da prova no processo penal condenatório

AutorPatrícia Maria Núñez Weber
CargoProcuradora da República. Mestranda em Direito Processual na UERJ.
Páginas296-326

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I Introdução

No labor jurídico diário, o debate sobre as provas está no cerne das atenções. Tendo em vista os limites da produção probatória decorrentes das próprias contingências humanas, em face de um processo que precisa findar em um prazo minimamente razoável, comumente faz-se necessária a observância de regras para a distribuição do ônus probatório, bem como para a resolução da demanda diante do insucesso na obtensão da certeza quanto aos fatos em análise.

Não obstante a importância prática do assunto, que redunda inclusive no próprio teor da decisão judicial a ser proferida, verifica-se pouca produção doutrinária nacional referente especificamente ao ônus probatório, tanto subjetivo como objetivo, no processo penal condenatório.

A possibilidade de configuração de ônus processual às partes no processo penal, que caracteriza-se pela suposta busca da verdade real e pela atuação mais intensa do magistrado na instrução probatória; os tipos de ônus possíveis; a compatibilização ou não da existência de ônus subjetivo para a defesa diante do princípio do in dubio pro reo e as características que tal ônus, se possível for, terá no processo penal acusatória, são temas que requerem reflexão.

Excitando-nos com o assunto, propomo-nos a pesquisá-lo. A dificuldade da tarefa revelou-se mais árdua do que prevista.

Optamos, como metodologia, por um debate contínuo ao longo do trabalho com a obra de Gustavo Henrique Badaró, intitulada Ônus da Prova no Processo Penal, fruto de sua tese de doutorado na Universidade de São Paulo. A doutrina nacional sobre o tema, embora não tão específica, foi consultada, no máximo que nos foi possível.

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Logramos expor ao final algumas conclusões que cremos acertadas, visando a compatibilização do ônus da prova subjetivo da defesa com a regra de julgamento consistente no in dubio pro reo, bem como com os princípios constitucionais da presunção de inocência, garantia do acesso à justiça, contraditório e ampla defesa.

Reconhecemos o caráter limitadíssimo da análise que será ora proposta, que, no entanto, nos serve de estímulo a continuidade do estudo sobre o tema. Esperamos que tal estímulo possa futuramente, quem sabe, também ser compartilhado por outros juristas, muito mais aptos a resolverem a questão, que requer seu lugar de destaque no pensamento jurídico nacional.

II Certeza e verdade

Para MALATESTA, a verdade, em geral, é a conformidade da noção ideológica com a realidade; a crença na percepção desta conformidade é a certeza. A certeza é, portanto, um estado subjetivo do espírito, podendo não corresponder à verdade objetiva. Certeza e verdade nem sempre coincidem; por vezes, tem-se a certeza do que objetivamente é falso; por vezes, duvida-se do que objetivamente é verdadeiro. A certeza, considerada na sua natureza intrínsica, tal como é, e não como seria melhor que fosse, consiste num estado subjetivo da alma e não pode ser confundida com a realidade exterior. 2

A partir da diferenciação entre certeza e verdade, esclarece o autor sua firme posição quanto à impossibilidade de graduação do conceito de certeza, que não se confunde com a probabilidade sobre a ocorrência de um determinado fato:

“Até aqui, após haver mostrado que a divisão objetiva da certeza levou a afirmar a existência de certezas maiores e menores, vimos combatendo essas afirmações irracionais e demonstrando como a certeza, estado simples e indivisível da alma, é sempre idêntica e Page 299 igual a si mesma, de onde não se poder, lógicamente, falar senão da sua maior ou menor capacidade de erro enquanto considerada em abstrato; e, viemos, por isso, examinando esta diversa possibilidade de erro, como resultado da consideração abstrata das diversas espécies de certeza.” (pp. 44-5)

(...) "A graduabilidade da certeza leva, pois, de seu lado, à graduabilidade das provas. Daí as fantásticas determinações de prova plena, semiplena, semiplena maior, semiplena menor; depois os estranhos fracionamento das metades, dos quartos e dos oitavos de prova. Mas, felizmente, podemos poupar-nos á fadiga detes trabalhos aritméticos de frações; a prova não é e não pode ser senão um todo. Em matéria de certeza, repetimos, não existe meio termo; tem-se a certeza ou não se tem.” (p. 89)

A posição defendida por MALATESTA parece-nos condinzente com a correta postura a ser adotada pelo julgador no processo, que através da análise profunda e rigorosa da prova produzida nos autos - e atuando supletivamente às partes, sempre que necessário-, atinja um grau de convencimento apto a gerar-lhe 'certeza' sobre o ocorrido. Importante destacar também que, embora haja diferença ontológica, há necessária correlação lógica entre certeza e verdade, uma vez que embora a certeza seja um estado de espírito acerca do conhecimento sobre um fato, tal estado é norteado pela convicção de que o conhecimento do fato obtido foi realizado da forma mais ampla, mais crível, e, por que não dizer, verídica possível. Tal constatação continua válida mesmo que sejamos adeptos às correntes filosóficas que enxergam a verdade absoluta como inatingível ao conhecimento humano, uma vez que há a verdade passível de ser alcançada no mundo dos fatos, que precisa orientar o nosso agir, sob pena de cairmos no império do discricionarismo e ignorância.

Outrossim, não podemos negar que a certeza parece-nos atingível, em termos metodológicos, através da análise probabilística dos elementos de prova disponíveis. Não se trata de meia certeza ou certeza plena, mas sim de que, diante da coerência das provas obtidas, o julgador será convencido da maior ou menor probabilidade de ocorrência do evento, o que suscita: a) a ignorância sobre o fato: não há elementos que lhe permitam questionar ou analisar o ponto; b) a possibilidade, em termos genéricos, de ocorrência do fato: trata-se de critério amplo, norteado pelas hipóteses aventadas pelas partes, hábeis a ser afastadas apenas quando tangem o absurdo; c) a verossimilhança ou probabilidade de ocorrência do fato: há elementos idôneos a identificar uma determinada configuração para os fatos em debate, embora de forma provisória, sujeita a dúvidas (normalmente, é o tipo de conjunto probatório necessário para o deferimento de medidas cautelares); d) o altíssimo grau de probabilidade de ocorrência do evento: o espírito humano fica com a sensação de 'segurança' acerca do ocorrido, não havendo pontos relevantes de questionamento em sua mente.

O processo acima descrito condiz com a lógica prática de atribuição do caráter de falso, possível, provável ou certo de um fato, bem como com as normas jurídicas existentes para determinar o grau de segurança exigível na prolatação de uma decisão judicial.

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Importante também destacar que a diferenciação realizada em termos de verdade real ou formal, no processo penal e processo civil, parece-nos falsa. O fato, em si, é verdadeiro ou é falso; o conhecimento que atingimos do fato pode-nos conduzir a certeza sobre a sua ocorrência ou não. Quanto melhor a colheita de provas realizada e menores os entraves referentes à provas legais e limitações probatórias3 injustificadas, melhor será o instrumental disponível para o alcance da 'verdade' sobre os fatos. Tanto assim é que, na atualidade, em virtude do caráter cada vez mais coletivo e diante da conscientização da natureza dita indisponível de inúmeros direitos pleiteados através do processo civil, existe no mesmo uma preocupação crescente com a melhor produção probatória e um maior ativismo judicial, e conseqüentemente com um uso mais restrito dos sucedâneos de prova (dentre os quais se destacam as presunções e o ônus da prova). Assim, falar-se em verdade formal ou material significa a aceitação de uma maior ou menor tolerância com o insucesso probatório ou apreciação limitada das questões em debate judicial.

III Questões a serem provadas, prova e ônus probatório

A diferença entre fundamento, ponto e questão é bastante tormentosa, em especial no processo penal.

Os fundamentos, em princípio, não precisam ser rebatidos pelo julgador, sendo incabíveis os embargos declaratórios. Como exemplos, teríamos as citações jurisprudenciais e doutrinárias constantes nas peças redigidas pelas partes e as alusões de simples retórica realizadas. Este deve ser, parece-nos, o limite.

Os argumentos utilizados para afirmar ou infirmar a tipicidade, ilicitude, culpabilidade e punibilidade configuram pontos, a necessitarem apreciação, mesmo que realizada de forma conjunta.

Os pontos são todos os tópicos da acusação ou defesa que devem ser objeto de pronunciamento judicial. A questão é o ponto duvidoso, normalmente controvertido entre as partes.4

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Como se constata a diferenciação é dificílima. Para maior tutela da ampla defesa e do contraditório, há que se entender, em especial no processo penal, que todas os pontos duvidosos são questões. Podem ser controvertidos ou não.

Inclusive, a questão não controvertida também pode ser objeto de prova, sempre que dos elementos constantes nos autos surjam indícios a infirmá-la.

Do exposto, salienta-se a amplitude do espectro probatório que se delineia no processo penal. A partir dos fatos em tese criminosos descritos na inicial5, suas circunstâncias, condições gerais e especiais, causas impeditivas, modificativas e extintivas, podem ser objeto de pronunciamento judicial, tenha ou não havido controvérsia específica sobre cada uma delas. Diante disso, urge que a tarefa probatória seja realizada de forma...

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