Reflexões sobre a aplicação da boa-fé objetiva à formação dos contratos de seguros

AutorAdriana Cristina Dullius Britto
Páginas245-260

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Ver Nota1

1. Introdução

Estamos passando por um momento de grandes transformações, económicas, políticas e sociais, que, direta ou indiretamente, afetam as relações interpessoais;2 tais trans-formações não poderiam, pois, ser ignoradas na análise dos fenómenos jurídicos, uma vez que, como bem colocado por Miguel Reale, há "em cada comportamento humano, a presença, embora indireta, do fenómeno jurídico: o Direito está pelo menos pressuposto em cada ação do homem que se relaciona com outro homem".3

O contrato, enquanto instituição social que "rege a voluntária circulação de riqueza, facilita coordenar relações interindividuais e permite distribuir riscos",4 não pode ser

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dissociado desse contexto de constante mutação, pois as relações econômicas que são seu substrato5 também são, efetivamente, as impulsionadoras das modificações observadas.

Dentre os contratos de maior relevância para o normal fluxo das relações econômicas,6 insere-se o contrato de seguros, na qual "um contratante - o segurado, paga a outro - o segurador - um prêmio, para que lhe garanta, diante de determinados riscos,7 um interesse legítimo, relativo a pessoa ou coisa".8

Em face disso, entende-se necessária uma abordagem mais aprofundada de seus aspectos teóricos, de onde se extrai a importância da realização presente estudo, que enfoca a incidência do princípio da boa-fé à atuação das partes durante a formação do contrato de seguros.

Para que se possa tratar do presente tema de uma forma mais contextualizada, realiza--se, em um primeiro momento, uma exposição sucinta dos elementos e da formação dos contratos em geral e, em cotejo, os elementos distintivos do contrato de seguros.

Em um segundo momento, passa-se à análise de aspectos do princípio da boa-fé objetiva enquanto princípio aplicável aos contratos; feito isso, aborda-se a incidência do princípio da boa-fé no contrato de seguros, sobretudo quanto à atuação das partes (segurador e segurado), no momento de sua formação. Finalmente, são apresentadas as conclusões decorrentes da análise realizada.

2. Formação do contrato de seguros: uma abordagem sistemática

Em linha com as considerações formuladas acima, colaciona-se conceituação formulada por Judith Martins-Costa, onde a mesma assevera ser o contrato "o resultado

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de uma atividade comunicativa voluntária e lícita entre sujeitos qualificados como suas 'partes', atividade, essa, expressada em um acordo, determinado ou determinável tempo-ralmente, voltado, teleológica e vinculativamente, para a produção de efeitos jurídicos primordialmente entre as suas partes, e cuja função é a de fazer circular a riqueza entre patrimônios, transformando a situação jurídico--patrimonial dos envolvidos e gerando-lhes uma expectativa ao cumprimento garantida pelo Ordenamento, segundo os seus critérios técnicos e valorativos".910

Este conceito agrega elementos aos constantes do conceito clássico de contrato como acordo de vontades dirigido a determinado fim.11 Todavia, esse conceito, de viés individualista, fulcrado no princípio da autonomia de vontade,12 em que dois parcei-ros, em condição de igualdade, discutiriam individual e livremente as cláusulas de seu acordo de vontade, não pode mais ser admitido de forma absoluta.13

Isso porque as situações geradas pela dinâmica das relações humanas alteraram--se, verificando-se a ocorrência de casos em que não se pode falar em autonomia ampla e irrestrita das partes para a negociação dos termos do contrato, gerada, sobretudo, pela disseminação dos contratos de massa, em que comumente estão presentes as cláusulas gerais contratuais, também conhecidas como cláusulas gerais contratuais.14

Ademais, não se pode olvidar o ensinamento de Enzo Roppo quanto ao caráter dinâmico da formação dos contratos,15 ao acentuar que "a formação do contrato consiste

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num processo, isso é, numa sequência de actos e comportamentos humanos coordenados entre si, segundo um modelo não já 'natural' e 'necessário', mas sim pré-fixado de modo completamente convencional e arbitrário pelo direito (pelos vários direitos). Se essa determinada sequência de actos e comportamentos humanos corresponde ao esquema estabelecido pelo ordenamento jurídico (e de modo diverso pelos diversos ordenamentos jurídicos), então pode dizer-se que esse determinado contrato se formou, ou concluiu, ou 'ganhou existência'".16

Passa-se, agora, à analise de aspectos específicos atinentes à formação dos contratos em geral, para, em momento seguinte, tratar das especificidades relacionadas à formação dos contratos de seguro.

2. 1 Formação dos contratos em geral

Iniciamos a presente análise com a lição de Judith Martins-Costa que, ao tratar das relações obrigacionais complexas e a formação progressiva do contrato, traça um panorama das situações que podem anteceder a conclusão do contrato, bem como de suas consequências práticas:

"Nem sempre uma relação obrigacional nasce de imediato. Ela pode ser formada progressivamente, num iter negocial e levará até a conclusão do contrato, e pode ser formada por graus, ou escalonadamente. Ambos os fenômenos merecem atenção por potencializarem a complexidade da relação e a incidência da boa-fé objetiva.

"Em face deste fenômeno, a praxe negocial, ainda antes da elaboração teórica, criou um sistema de contratação bastante ágil, que retoma, atualizando-os, os antigos conceitos de minuta e punctação. Daí a chamada 'formação progressiva' do contrato, expressão que (...) designa as hipóteses nas quais as partes alcançam acordo sobre alguns pontos do regulamento contratual, mas não sobre outros, referindo-se, pois, aos casos nos quais o regulamento contratual vem a formar-se progressivamente sobre singulares pontos, e 'a aceitação última não se encontra numa única proposta, mas reúne toda uma série de propostas e de aceitações parciais'.

"A consequência desse modo de proceder está em que se verifica uma espécie de formação por graus que di ficultará a clara delimitação do adimplemento. Já a formação é desenvolvida com base em acordos relativos a determinados elementos de um 'todo', ainda não perfeitamente determinado em seus integrais termos, até alcançar, por fim, a completa definição do regulamento contratual, cujo iter formativo, portanto, pode resultar variadamente articulado em diversas fases, cada qual com valência e funções jurídicas, 'na unitária prospectiva dos efeitos negociais finais'. (...). Somente a visão da relação obrigacional como uma totalidade ou 'sistema de processos' concretamente considerados poderá auxiliar o intérprete."17

Para realização de análise do fenômeno da formação dos contratos em geral, será adotada a sistematização proposta por Daniela Moura Ferreira da Cunha, que constatou a possibilidade de divisão de período contratual em dois momentos: negociação e formação.18

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2.1. 1 Fase negociatória

Daniela Moura Ferreira Cunha, emba-sada em ensinamento de Carlos Alberto da Mota Pinto, refere que a fase negociatória vai do início das negociações até a formulação da proposta de contrato.19

Neste momento, observa-se a ocorrência das denominadas tratativas, ou seja, o momento em que ocorrem discussões sobre os termos do futuro contrato, sem que, todavia, haja vinculação efetiva entre as partes envolvidas na discussão, situação que é muito comum nos contratos estruturalmente mais complexos.20 Comum nesta fase, também, é a redação de correspondências e de minutas de contrato, que, apesar de não vincularem as partes, demonstram o iter que percorreram as negociações, podendo ser usadas como elementos para verificação do respeito aos princípios legalmente estabelecidos, em especial ao daboa-fé objetiva.

É, ainda, neste momento que pode ocorrer o convite a contratar, comumente formulado nos contratos de seguro, definido como "a mensagem que, evidenciando disponibilidade para iniciar um diálogo dirigido à formação de um ou mais contratos, não deva, nas circunstâncias concretas, ser considerada como proposta contratual".21

Considera-se que houve convite a contratar no caso de existência de menção expressa de que a mensagem veiculada não se trata de proposta ou se os elementos constantes da mensagem não forem suficientemente precisos ou completos para que se caracterize uma proposta.2223

No ensinamento de Enzo Roppo, verifica-se a ocorrência do convite a contratar quando não constem de determinada declaração todos os elementos essenciais do contrato visado, nos termos do art. 1,336 c. 1 do Código Civil Italiano. Neste caso, a parte que lançou a ideia de elaborar o contrato teria, ao final, a palavra final em sua conclusão, uma vez que "para provocar a conclusão do contrato, não bastaria, assim, a aceitação da outra parte, mas essa última, estimulada pelo convite, deveria, por seu turno, formular a proposta verdadeira e própria, proposta esta que, aquela que havia convidado, teria a faculdade de recusar ou aceitar, reservando-se, assim, o poder de decisão definitiva acerca da formação do vínculo contratual".24

Na fase negocial ocorre, igualmente, a redação das cláusulas contratuais gerais, também conhecidas como condições gerais do negócio, que tem grande importância nos contratos de seguro, bem como nos demais contratos massificados.

Trata-se de técnica de pré-elaboração de futuros contratos, na qual é previamente redigida, unilateralmente, uma lista de cláusulas contratuais a serem inseridas em futuros contratos a serem celebrados;25 os

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contratos em que, com a...

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