Reflexões sobre as bases da política criminal

AutorJesús-María Silva Sánchez
CargoCatedrático de Direito Penal na Universidade Pompeu Fabra
Páginas111-121

    Tradução de: Bruno Costa Teixeira. Jamili Abib Lima Saade

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1 A administração da herança determinista de von Liszt

Franz von Liszt conduziu a Política criminal ao patamar de disciplina cientifica,1 a concebendo como o conjunto de critérios determinantes de uma luta “eficaz” contra o delito.2 Seu ponto de partida, como é sabido, era uma concepção determinista do homem, uma visão do delito como reflexo do caráter perigoso do mesmo (social e individualmente determinada)3 e uma fé positivista na possibilidade de corrigir os fatores individuais (por meio da psiquiatria ou da educação) e as estruturas sociais (através de políticas sociais) que conduzem ao delito. Por todo isso, sua proposição da Política criminal “empírica” é expressão clara da ideologia terapêutica do final doPage 112 século XIX; parte-se do diagnóstico da Criminologia empírica e se responde com a terapia da Penologia, com o peculiar conceito que da mesma tem o próprio von Liszt.

"Die Kriminalpolitik, so wie wir sie verstehen, ist bedingt durch den Glauben an die Verbesserungsfähigkeit des Menschen, des einzelnen, wie der Gesellschaft".4

O anterior somente pode resultar uma novidade para quem unicamente estiver familiarizado com o von Liszt de "Lehrbuch", que comumente se associa ao conceito classificatório do delito (na forma causalista-naturalista). A respeito, convém não ignorar a profunda distinção que existe entre o Liszt dogmático e o Liszt político-criminal.5 O primeiro é um autor que em seu Tratado (de 1881) descreve e sistematiza o Código penal alemão de 1871; mas que entende a dogmática como uma disciplina inferior, dedicada a explicar sistematicamente o Código aos estudantes de Direito. O segundo é quem, por sua vez, desde o Programa de Marburgo (1882) desenvolve uma concepção político-criminal baseada na ideologia terapêutica e, em última instância, na substituição da pena e do Direito penal da culpabilidade pela medida de segurança e do Direito penal da perigosidade. No marco da dualidade, adquire provavelmente todo sentido sua frase tantas vezes citada de que o Direito penal – ou seja, o StGB de 1871 - é a "unübersteigbare Schranke der Kriminalpolitik".6 Em outras palavras, que a política criminal eficaz porPage 113 ele preconizada deve ser, ao menos no momento, contida, porque não é a aceita pelo Código vigente.7

É fato que a Política criminal "científica" surge da mão de von Liszt, e até certo ponto lógico que muitos associam também o teor da Política criminal à ideologia terapêutica e ao intervencionismo penal que caracterizavam a própria concepção de von Liszt sobre a mesma.8 Por outro lado, insta salientar que esta, de entrada, teve conotações prestigiosas:9 era o momento em que a substituição da pena pela medida de segurança e a do jurista pelo médico se davam como uma opção humanista e de progresso.

Ahora bien, o passar do tempo – e o advento dos totalitarismos de todos os tipos, que fizeram sua a Política criminal intervencionista-terapêutica - modificou esse juízo inicial. E como se afirmou, contra o que era esperado, a exclusiva referência do Direito penal ao cumprimento de supostas funções sócio-terapêuticas não implicava sua limitação senão precisamente sua ampliação a níveis até então desconhecidos.10 Mais ainda, esta referência a funções sócio-terapêuticas do DireitoPage 114 penal seguem sendo hoje o ponto de partida para todas as tendências expansionistas do Derecho penal.11 É o que Hassemer denomina o "Direito penal curativo" (ou terapêutico), em que o Direito penal já não se manifesta como incômodo, senão como médico,12 e as prevenções de todo tipo que cabia opor frente a aquele se dissipar-se-iam ante a perspectiva curativa, que se manifesta então em toda sua potencia antiliberal.

Em todo caso, o modelo intervencionista do Direito penal do autor perigoso não se manteve. Já antes da II Guerra Mundial, no marco da própria República de Weimar, onde ficou claramente consagrado o sistema da dupla via.13 Além do mais, o imediato pós-guerra fez submergir o descrédito deste modelo, que nunca se manteve em suas pretensões iniciais: assim, nem o movimento da chamada defesa social nem, muito menos, a nova defesa social eram mais que epígonos muito debilitados do anterior. Caso distinto é o dos Estados Unidos, em que as idéias utilitaristas que servem de base a esta concepção (incapacitação, reabilitação, dissuasõ) haviam se consubstanciado em modelos (como o da sentença indeterminada) muito próximos da ideologia aludida.14

No final dos anos 50 e 60, por ocasião do processo da reforma penal alemã, volta-se a falar no círculo dos "professores alternativos", de um retorno a von Liszt.15

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Sendo assim, como ocorre em todos os retornos, aqui também não se retoma ao von Liszt originário. Dessa forma, certamente se pretende retomar o discurso da função sócio-terapêutica do Direito penal. No entanto, a eficácia já não é o único critério de racionalidade da luta contra o delito, pois foram introduzidos outros princípios de autocontenção. O discurso político-criminal da reforma assume assim dois referentes de racionalidade: um empírico, de eficácia, e outro valorativo, de garantias.16 Deste modo surge a Política criminal valorativa, que marcou os últimos trinta anos. Anos durante os quais, todavia, foram dissolvendo seus dois pilares fundamentais: a fé na ressocialização e, também, a convicção acerca da indisponibilidade das garantias. Em troca, foi se assentando uma Política criminal "prática" de orientação intimidadora, em um contexto geral presidido pela oportunidade e pelo populismo. Seguramente não é exagerado afirmar que a situação do Direito penal se está ficando insustentável.17 Agora, mais do que nunca, deve-se, pois, ressaltar a necessidade de orientar a Política criminal aos princípios que derivam da idéia de dignidade da pessoa.

2 Sobre a idéia de "Política criminal"

De início, é necessário fazer uma distinção categórica entre a práxis da Política criminal e uma Política criminal teórica.18 A primeira se integra do conjunto de atividades –empíricas – organizadas e ordenadas para a proteção de indivíduos e da sociedade para a prevenção do delito.19 A segunda aparece constituída por umPage 116 conjunto de princípios teóricos que haveriam de dotar una base racional20 ao invés da referida práxis21 de luta contra o delito; na qual o mais importante é precisamente determinar o quê significa "racional" e quais podem ser os critérios de racionalidade.

Em todo caso, é certo que tais princípios da Política criminal se concretizam na adoção de diversas formas de prevenção do delito (estritamente preventivas umas; repressivo-preventivas, as outras).22 Em boa medida, a Política criminal se manifesta em uma série de instrumentos que devem ser associados nominal ou faticamente à produção presente ou futura do delito de forma a evitar que este se produza ou se reitere.23 Assim ponderado, podem ser feitas duas afirmações. Por um lado, que desde logo a Política criminal não se esgota em medidas jurídicopenais.24 Por outro lado, no entanto, que, embora a Política Criminal se configure em términos mais amplos, todo o Direito penal se integra na Política criminal. Assim, para o penalista existe uma prática identificação entre a teoria dos princípios da Política Criminal e a dos fins (e meios) do Direito penal. O Direito penal é expressão de uma Política criminal.25 Destarte, a discussão sobre os fins do Direito penal e sobre os meios precisos para alcançar tais fins não pode ser mais que umaPage 117 discussão político-criminal.26 E a vocação da discussão político-criminal é, em última instância,27 a reforma do Direito penal.28

Dentre os princípios da Política Criminal, ocupam lugar primordial aqueles que determinam a própria qualificação de um fato como delito – e não como um fato social juridicamente não pribido, ilícito civil ou ilícito administrativo –. Em outras palavras, a própria definição de quais são os delitos constitui competência da Política criminal: quantas são as condutas que devem ser racionalmente qualificadas como delitivas.29 E não só em relação aos bens que mercem e precisam de proteção penal, mas também quanto a que classe de condutas descrevem riscos penalmente relevantes: tentativas, fatos imprudentes, condutas por comissão ou missão; etc. Neste ponto surge uma das características fundamentais da Política criminal: esta aparece como um sistema que se auto-define. E isto determina a necessidade de se...

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