Redes agroalimentares alternativas e consumo crítico: o caso das feiras orgânicas de Porto Alegre

AutorGraciela Cristina Dillemburg Martil, Flávio Sacco dos Anjos
CargoMestre em Sociologia pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel) (2016), é professora-formadora (Bolsista Capes/UAB) do Curso de Licenciatura em Filosofia da UFPel/Professor Titular da Faculdade de Agronomia da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia (UFPel). É doutor em Sociologia pela Universidade...
Páginas172-203
DOI: http://dx.doi.org/10.5007/2175-7984.2020v19n44p172
172172 – 203
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Redes agroalimentares alternativas
e consumo crítico: o caso das
feiras orgânicas de Porto Alegre1
Graciela Cristina Dillemburg Martil2
Flávio Sacco dos Anjos3
Resumo
As quatro últimas décadas coincidem com a aparição do que se convencionou chamar “redes
agroalimentares alternativas”. Os inúmeros escândalos, a incerteza generalizada e a busca por
alimentos mais saudáveis figuram em destaque, dentro de um movimento mais amplo denomi-
nado “turn of quality”, em que a ideia de qualidade ultrapassa os atributos estritos e tangíveis do
produto. As feiras orgânicas de Porto Alegre se inserem dentro das transformações que incidem
sobre o mundo da alimentação em geral. O foco do estudo é elucidar as circunstâncias que
contribuíram para o seu surgimento, assim como as mutações que esse sistema local de abaste-
cimento experimenta desde o seu surgimento. A pesquisa busca mostrar que as feiras orgânicas
consistem num espaço social singular em que operam muito mais do que operações de compra e
venda de alimentos. Não obstante, há desafios em relação ao futuro, especialmente os desdobra-
mentos decorrentes do incremento da demanda e risco de convencionalização.
Palavras-chave: Canais curtos de comercialização. Consumo crítico. Feiras livres. Agricultura
orgânica. Agroecologia.
1 Este trabalho não poderia ter sido realizado sem o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico
e Tecnológico, através da concessão de bolsa de produtividade ao segundo autor (processo nº 305086/2018-
9), bem como à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, pela concessão de bolsa de
Professor Visitante Sênior (PrInt-Capes Program, processo nº 88887.363956/2019-00), a qual viabilizou sua
missão científica (2019-2020) junto ao Instituto de Estudios Sociales Avanzados (Córdoba), ligado ao Consejo
Superior de Investigaciones Científicas de Espanha, a quem agradece a acolhida.
2 Mestre em Sociologia pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel) (2016), é professora-formadora (Bolsista
Capes/UAB) do Curso de Licenciatura em Filosofia da UFPel.
3 Professor Titular da Faculdade de Agronomia da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e do Programa de
Pós-Graduação em Sociologia (UFPel). É doutor em Sociologia pela Universidade de Córdoba, Espanha (2000).
Política & Sociedade - Florianópolis - Vol. 19 - Nº 44 - Jan./Abr. de 2020
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Introdução
O pensamento ocidental foi bastante inuenciado pela Escola de
Frankfurt, vertente intelectual que, entre outros aspectos, consolidou as
bases e os rumos da sociologia e da losoa crítica universais. Filósofo,
sociólogo, compositor musical e crítico de arte, eodor Adorno foi um de
seus grandes expoentes, assim como do neomarxismo europeu. Sua visão
losóca iluminou o debate sobre a natureza e o impacto da indústria cul-
tural e dos meios de comunicação de massa, em meio ao surgimento dos
grandes conglomerados da comunicação audiovisual.
Com Max Horkheimer, Adorno estabeleceu uma parceria intelectual
que ensejou a criação de inúmeros trabalhos, entre os quais A dialética do
esclarecimento (ADORNO; HORKHEIMER, [1944] 1995), considerada
como uma das mais emblemáticas obras do século XX. Nela vemos cris-
talizados o desencanto de uma sociedade que renuncia à emancipação dos
indivíduos, bem como aos compromissos mais amplos de transformação
social num mundo em estado constante de ebulição.
Até o nal de sua vida, Adorno seguiu defendendo a relevância do pen-
samento crítico. Cada ato crítico há que ser visto como se fora uma garrafa
jogada ao mar para destinatários ignorados, cuja mensagem essencial é a
de que a indústria cultural esconde o que permanentemente promete aos
seus consumidores, qual seja, a ideia de uma felicidade plena centrada na
materialidade dos objetos de fruição individual.
A ascensão dos grandes impérios agroalimentares (PLOEG, 2008),
com suas cadeias globais de suprimento e distribuição, espalhadas pelos
quatro quadrantes do planeta, há que ser vista muito além de um fenôme-
no inerente ao surgimento das metrópoles, de um acelerado processo de
urbanização e de mudanças dos padrões de consumo. Em verdade, trata-se
de um processo que se apoia nos apelos tanto ao consumo quanto à força
dos instrumentos de persuasão de uma indústria cultural cuja quintessên-
cia descansa nas grandes cadeias de fast food, ou no que Ritzer (1996) de-
ne como uma sociedade macdonaldizada, com sua linguagem universal
de símbolos e suas poderosas ferramentas midiáticas de sedução e encanta-
mento. Não raras vezes, a embalagem, o ambiente e os adereços adquirem
um peso maior do que o produto alimentício contido em seu interior.
Demarche dos dispositivos: apontamentos sobre ordens, convergências e situações no campo econômico-financeiro | Ana Carolina
Bichoffe, Mateus Baeta Diógenes
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Paralelamente, desde as quatro últimas décadas, o mundo moderno
trouxe consigo uma desconcertante sucessão de escândalos agroalimenta-
res. No rosário interminável de episódios, constam, em destaque, a co-
mercialização de carne radioativa no Japão, o hambúrguer com carne de
cavalo no Reino Unido, a contaminação por Escherichia coli na Alemanha,
a síndrome da vaca louca, a gripe aviária e suína, ou mesmo as adulterações
do leite UHT no Brasil com a adição de ureia, formol e água oxigenada,
as quais deagraram a operação “Leite Compensado”, levada a efeito pela
Polícia Federal, desde 2013, que permanece inconclusa até o momento de
nalização deste artigo.
Esses e tantos outros episódios não fazem outra coisa senão ‘alimentar’
um clima de incredulidade e suspeição sobre o que hodiernamente estamos
consumindo. Toda a polêmica atual em torno ao mundo da alimentação
se encaixa perfeitamente dentro do conceito de “sociedade de risco” enun-
ciado pelo sociólogo alemão Ulrich Beck. Acusado de ser um teórico do
catastrosmo (MOL; SPARGAAREN, 1993)4, Beck (1992) assevera que,
na sociedade industrial, a estraticação social e os conitos estavam ligados
à divisão da riqueza, enquanto na sociedade atual vivemos um tempo mar-
cado pela divisão e administração de riscos (ecológicos, químicos, econô-
micos, nucleares, genéticos etc.). Se o perigo parece associado à fatalidade,
a ideia de risco remete à exposição voluntária e calculada de um dano, o
qual está normalmente ligado a uma estimativa de seus efeitos.
As mutações operadas no mundo da alimentação reetem com extre-
ma claridade não somente a natureza e extensão dos riscos a que estamos
expostos, mas também a fragilidade das instituições de controle e as incer-
tezas em torno aos sistemas peritos, a quem foi dado poder justamente para
assegurar o cumprimento de normas em matéria de segurança alimentar.
4 Somos conscientes de que os riscos atuais afetam indistintamente o conjunto dos indivíduos, independen-
temente de sua condição social (e.g., a poluição do ar ou da água). Todavia, atingem sobretudo os grupos
sociais mais frágeis, dado que estão mais expostos e menos preparados para reagir às adversidades. Enquanto
consumidores, eles terão menor poder de compra, adquirindo produtos alimentares de qualidade inferior cuja
procedência, em boa medida, é absolutamente desconhecida. No momento de finalizar este artigo, desembar-
carão no Brasil 17 toneladas de carne de frango que foram rechaçadas no Reino Unido por contaminação de
salmonela. A atual Ministra da Agricultura do Brasil (Tereza Cristina) afirma que a aludida mercadoria pode ser
revendida para o mercado nacional, a qual, seguramente, será consumida pelos mais pobres do país.

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