Reconstrução facial forense

AutorPaulo Eduardo Miamoto Dias
Páginas183-210

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Introdução

O labor pericial de identificar o cadáver desconhecido necessariamente envolve um processo comparativo entre dois registros, um prévio e um póstumo, vale dizer, respectivamente um ante-mortem (AM) e um post-mortem (PM). No caso da identificação humana por parâmetros odontológicos, os registros no AM (prontuários odontológicos) e PM (exame cadavérico) devem conter dados odontológicos suficientes para que o perito odontolegista confirme ou não a identificação positiva (Silva et al., 2013).

Por vezes, os registros PM podem ser escassos devido a fatores tafonômicos como fragmentação, decomposição avançada, ação do fogo e calor, turbações e intempéries (Brito et al., 2013). Também em alguns casos, a escassez de informações odontológicas AM, ou seu registro deficiente, impreciso ou ambíguo podem contribuir para o insucesso da identificação humana por parâmetros odontológicos. Aos institutos periciais, podem ser encaminhados cadáveres irreconhecíveis, em avançado estado de putrefação, ou rumando esqueletização adentro. Se o exame necropapiloscópico restar impossibilitado, o cirurgião-dentista (CD), investido em sua função pericial oficial, poderá proceder, após uma documentação inicial detalhada, à maceração (ou redução) dos tecidos moles remanescentes para que a ossada seja estudada em condições adequadas. Em geral, este processo é auxiliado por água aquecida, detergentes e remoção mecânica, porém métodos entomológicos também podem ser empregados, sendo recomendável que não seja utilizado nenhum agente químico que possa interferir com análises subsequentes (Guimarães, 2015).

Na ossada, é possível realizar registro de odontograma PM, exames radiológicos, coleta de material genético na polpa dentária e outras áreas. O exame antropológico pode ajudar a estimar o perfil bioantropológico do indivíduo, nos quesitos sexo, idade, ancestralidade e estatura. Ainda é possível registrar

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manifestações patológicas osteo-dentais, elementos sinaléticos individualizantes, dados relativos a traumas AM e/ou peri-mortem, e diferenciá-los de danos PM aos restos mortais, investigar a causa e o modo de morte, além de estimar a destreza manual. É marcante a riqueza de informações que podem ser levantadas a partir do exame dos ossos e dentes do cadáver (Moraes e Miamoto, 2015).

Infelizmente, mesmo uma abundância de dados PM não possibilita uma identificação positiva, a não ser que haja dados AM para análise comparativa. Em outras palavras, é necessário que alguém com o perfil bioantropológico do cadáver esteja sendo procurado, e que as informações AM e PM sejam comparáveis entre si. Sem dados AM disponíveis, chega-se a uma espécie de 'beco sem saída', em termos de identificação humana. Neste contexto, um método auxiliar à disposição do perito é a reconstrução facial forense, que também pode ser denominada por sua sinonímia, aproximação facial forense (Taylor, 2000). O objetivo deste capítulo é expor esta metodologia do ponto de vista geral, como método auxiliar à identificação humana, discutir aspectos técnicos e explicar a diferença entre as principais abordagens para sua execução.

Fundamentos

A reconstrução facial é um processo que busca produzir uma representação da face de um indivíduo a partir do estudo de seus restos mortais e outros vestígios. Pode ser conduzida em contextos arqueológicos ou históricos (Verzè, 2009), para especular a aparência de pessoas que viveram em épocas passadas. Pode ser realizada em contextos museológicos, com finalidade de complementar o acervo de uma exposição e trazer mais informação aos seus visitantes. Também é conduzida com fins educacionais, no treinamento de recursos humanos que atuem em situações nas quais a técnica pode ser útil. Por fim, pode ser realizada em contextos forenses, como método auxiliar à identificação humana. Para uma revisão bibliográfica sobre reconstrução facial a partir de uma perspectiva histórica, o leitor é direcionado a consultar os trabalhos de Taylor (2000), Wilkinson (2004) e Verzè (2009).

A imagem da face reconstruída (ou aproximada) deverá ser exposta e complementada com informações sobre o encontro do cadáver (data, local do encontro, perfil bioantropológico, caracteres individualizantes como próteses, marca-passos, fraturas, cicatrizes, peças de roupa que trajava e objetos pessoais encontrados). Ao ser divulgada, a imagem deverá ser visualizada por alguém que, após um processo cognitivo próprio, reconheça a imagem como sendo possivelmente de uma pessoa desaparecida de seu círculo social. Sensibilizado pelo reconhecimento, este indivíduo deverá contatar as autoridades competentes e possibilitar acesso a informações AM. Assim, os exames convencionais de

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identificação humana poderão ser executados, para estabelecer (ou não) a identificação do cadáver desaparecido (Wilkinson, 2010).

Na verdade, é um processo trabalhoso, que tem chances reduzidas de sucesso, pois depende de um exame adequado dos restos mortais, da execução adequada do processo de reconstrução facial forense (RFF), de tempo para a execução do processo, de uma divulgação que alcance pessoas do círculo social do cadáver desconhecido e que, uma vez alcançando uma destas pessoas, seja suficientemente reconhecível, reavivando sua memória e fazendo com que a mesma contate as autoridades envolvidas no caso (Wilkinson e Rynn, 2012). Não obstante, continua um método auxiliar a ser empregado, cabendo à instituição pericial a avaliação da viabilidade da técnica frente a casos sem informações AM. Considerando que há muitos cadáveres irreconhecíveis encontrados e não reclamados, este recurso apresenta-se como mais uma opção técnica no enfrentamento ao problema social das pessoas desaparecidas.

Tocante à sua esfera forense, faz-se sempre necessário ressaltar que este não é um método de identificação humana. Na verdade, trata-se de um método de reconhecimento, conceito distinto de identificação pois carece de metodologia cientificamente robusta, fiando-se apenas no olhar subjetivo do observador. Ainda que possa ser considerado um método antropológico, também é notório seu caráter multidisciplinar, não havendo reserva legal de atuação em sua execução. Na prática, dificilmente um só profissional pode reunir todos os atributos desejáveis para a realização da técnica, e observa-se que muitos casos são conduzidos de forma a envolver diversos profissionais, desde os ligados às áreas técnico-científicas, como odontolegistas, antropólogos forenses, peritos criminais e médicos legistas a profissionais de arte médico-forense, como escultores e designers gráficos, que unem esforços para aproveitar suas melhores habilidades (Scientific Working Group for Forensic Anthropology, 2011).

Uma RFF tem mais chances de ser reconhecida quanto mais precisa e completa for a análise antropológica/odontológica/médico-legal do material esquelético que a guiará. Mais do que estimar adequadamente o perfil bioantro-pológico, a equipe deverá: realizar um exame voltado à interpretação das relações entre a morfologia dos tecidos duros e seu correspondente em tecidos moles, para que possam ser reproduzidos na medida do possível; conhecer sua anatomia; conhecer os processos de desenvolvimento, maturação e envelhecimento que manifestam-se com a idade e nas diferentes áreas da face; entender de que modo as características do sistema estomatognático influem na aparência facial (Farkas, 1994); compreender como se manifesta o dimorfismo sexual na face (Stephan et al., 2016), assim como nas diferentes composições ancestrais; em suma, como a variação humana expressa-se. Todos estes fatores podem contribuir para uma

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melhora na qualidade da aproximação facial, lembrando que sua negligência também poderá prejudicar seu reconhecimento, ou pior ainda, poderá levar o observador que efetivamente conhecia a vítima a não reconhecê-la, sepultando a chance de identificação positiva (Wilkinson, 2004).

Um sólido conhecimento dos fatores que contribuem para a aparência do rosto a partir do crânio pode aumentar a individualização de uma RFF. Se todas as faces são únicas (mesmo as dos gêmeos idênticos), pode-se realizar RFFs que também sejam únicas, desde que as informações disponíveis que sinalizem a aparência facial sejam adequadamente detectadas e utilizadas para guiar o processo. A interação entre os tecidos moles subcutâneos da face (glândulas, músculos, cartilagens e órgãos) com seu arcabouço em tecido duro pode ser aproximada com base em abordagens objetivas e reprodutíveis. Tome-se por exemplo o conhecimento sobre a morfologia dos músculos da cabeça, suas origens e suas inserções, e o operador bem treinado poderá reproduzir boa parte das estruturas que dão forma à face. Assim, a camada de pele que repousará sobre esta 'moldura' tende a individualizar a aparência da reconstrução, com base em elementos objetivos (Prag e Neave, 1999). Paralelamente, diferentes formatos dos ossos da órbita podem indicar diferentes morfologias das pálpebras e supercílios (Wilkinson e Rynn, 2012). A compreensão desses parâmetros para a individualização da face é uma das pedras fundamentais para o interessado na técnica. A literatura especializada é rica em instruções detalhadas e oferece um grande suporte para o planejamento das aproximações faciais, como os livros de Taylor (2000), Gibson (2008) Wilkinson (2004), nos quais capítulos inteiros são dedicados ao estudo da morfologia craniofacial e sua implicação em RFF.

Um dos campos de pesquisa em RFF compreende a investigação das diferentes estruturas faciais e como estimar sua morfologia aproximada. Neste sentido, diferentes áreas da face foram estudadas e métodos para sua aproximação são propostos, como no caso dos lábios (Stephan, 2003; Stephan e Henneberg, 2003; Wilkinson et al., 2003; Stephan e Murphy, 2008; Dias et al., 2016), órbitas (Stephan, 2002...

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