O reconhecimento de povos tradicionais e os usos contra-hegemonicos do direito no Brasil: entre a violencia e a emancipacao social/The recognition of traditional peoples and counter-hegemonic uses of law in Brazil: between violence and social emancipation.

AutorHagino, Cora Hisae

Introducao

A luta por reconhecimento no Brasil esta diretamente relacionada as politicas publicas voltadas as minorias etnicas que vivem no pais. Essa luta, no contexto nacional, esta frequentemente associada as identidades de grupos e ao direito ao territorio ocupado. Neste sentido, a apropriacao da categoria juridica "povos tradicionais" (1) por grupos indigenas, quilombolas, pescadores artesanais, ribeirinhos e seringueiros, entre outros grupos, tem sido utilizada para garantir direitos relacionados principalmente ao territorio. Neste contexto, identidades antes estigmatizadas sao agora disputadas e reinventadas. Mas como articular o direito a igualdade com o reconhecimento da diferenca? E como evitar que o reconhecimento da diferenca nao se torne uma forma de cidadania tutelada pelo Estado? Estas sao algumas questoes complexas que buscaremos problematizar no decorrer deste artigo.

Os povos tradicionais foram escolhidos para compor nosso objeto de estudo pois sinalizam as praticas dos grupos compreendidos por Santos (2003b e 2007) no campo da globalizacao contra-hegemonica e subalterna, ou seja, do cosmopolitismo subalterno. Alem disso, estas populacoes tradicionais sao uma contraposicao ao campo da globalizacao hegemonica que tem como preocupacao fundamental a defesa do direito de propriedade e e representado pelas agencias financiadoras, como o Banco Mundial, o Fundo Monetario Internacional e as grandes agencias multilaterais e nacionais de ajuda ao desenvolvimento (Santos, 2007).

O movimento indigena e quilombola, apesar de serem diferentes, autonomos e terem caracteristicas proprias e bandeiras especificas, ao comporem o mesmo campo, tem em comum o questionamento do modelo de apropriacao da terra no Brasil e, assim como Santos (2003b: 11) analisou em alguns momentos, se encontram e promovem lutas conjuntas por vezes motivado pelos problemas advindos do processo de globalizacao em curso, que torna necessario articulacoes maiores de varios grupos da globalizacao contra-hegemonica (2):

[...] se e certo que esta propagou por todo o globo o mesmo sistema de dominacao e de exclusao, nao e menos verdade que criou as condicoes para que forcas, organizacoes e movimentos contra-hegemonicos localizados nas mais diversas partes do mundo se apercebessem da existencia de interesses comuns nas proprias diferencas e para alem das diferencas que ha a separa-los, e que convergissem em combates contra-hegemonicos consubstanciadores de projectos sociais emancipatorios distintos mas relacionados entre si (Santos, 2003b: 11). Optamos, neste texto, por analisar tais lutas levadas ao Judiciario em diferentes circunstancias por dois movimentos da globalizacao contra-hegemonica: quilombola e indigena. As dinamicas das lutas vividas por cada um destes grupos apresentam varias diferencas, mas tambem possuem algumas semelhancas. Tais lutas serao estudadas em uma dupla perspectiva, a politica e a juridica, pois como explicado por Santos, o "uso nao-hegemonico de ferramentas juridicas hegemonicas parte da possibilidade de as integrar em mobilizacoes politicas mais amplas, que podem incluir accoes tanto legais como ilegais" (Santos, 2003b: 40).

  1. O colonialismo e os povos tradicionais: apropriacao e violencia "do outro lado"

    As teorias contratualistas dos seculos XVII e XVIII marcaram a passagem de um estado de natureza a sociedade civil, um mundo novo supostamente civilizado, em que o Estado garante a vida, a liberdade e a propriedade aos individuos. Todavia, o que a teoria contratualista omite e que o contrato social e a teoria liberal excluiram milhoes de homens e mulheres que foram obrigados a viver no estado de natureza. O contrato social, ao incluir alguns individuos, recusou muitos outros, a maioria da populacao. "A modernidade ocidental, em vez de significar o abandono do estado de natureza e a passagem a sociedade civil, significa a coexistencia da sociedade civil com o estado de natureza, separados por uma linha abissal [...]" (Santos, 2009a: 28).

    A divisao criada pelo contrato social permanece ate os tempos atuais. Boaventura de Sousa Santos (2009a: 23) afirma que "o pensamento moderno ocidental e um pensamento abissal". Isso significa que o mundo esta fraturado epistemicamente por linhas abissais que separam o existente do nao existente e o possivel do indesejado. Essas linhas se movem de acordo com o tempo e com o contexto socio-politico. Interessante observar que a maior parte das populacoes mundiais e suas formas de produzir, suas economias, seus saberes e seus modos de vida nao fazem parte do capitalismo moderno ocidental, encontram-se "do outro lado".

    O pensamento moderno e um pensamento abissal. Consiste num sistema de distincoes visiveis e invisiveis, sendo que as invisiveis fundamentam as visiveis. As distincoes invisiveis sao estabelecidas atraves de linha radicais que dividem a realidade social em dois universos distintos: o universo 'deste lado da linha' e o universo 'do outro lado da linha'. A divisao e tal que 'o outro lado da linha' desaparece enquanto realidade, torna-se inexistente, e e mesmo produzido como inexistente. (Santos, 2009a: 23) Para o liberalismo, os povos tradicionais sao residuos que restaram de um estado de pre-modernidade, pois sequer fazem parte do contrato social, encontram-se, neste sentido, "do outro lado da linha". Contudo, para Santos (2003b), estes grupos contem elementos mesclados de pre-modernidade, modernidade e pos-modernidade, assim como a propria sociedade capitalista ocidental.

    Os povos do "Sul" considerados tradicionais como os indigenas, os quilombolas, e outros grupos sao invisibilizados, sendo considerados por uma visao colonizadora um resquicio do passado, sem qualquer perspectiva futura. Seus territorios, ja ha muito tempo usurpados por grileiros (3) e especuladores, agora podem voltar a ser seus atraves do reconhecimento da identidade "tradicional" que garante o direito ao territorio ocupado.

    Todavia, ao passo que a categoria povo tradicional permite o desenvolvimento e a reproducao socio-cultural de determinados grupos, esta mesma categorizacao limita o modo de vida destas comunidades, pois o senso comum entende estes grupos como parados no tempo, o "tradicional" existente em oposicao ao "moderno".

    A pretensao de universalidade do capitalismo moderno ocidental tenta se impor sobre povos culturalmente diferenciados, como os nao ocidentais, os nao cristaos, entre outros. Esta pretensao que, em outros momentos da historia, levou ao desaparecimento de diversos povos, (4) hoje persiste na eliminacao pela invisibilizacao das formas de saber e viver de povos colonizados. Como exemplo disso, temos os saberes locais, que adquirem status inferior ao saber cientifico na modernidade e, desta forma, impoe-se uma nova forma de dominacao e violencia pelo nao reconhecimento destas praticas sociais. Neste sentido, a diversidade epistemologica do mundo fica reduzida a ciencia produzida nas universidades e nos laboratorios, recusando-se saberes e experiencias populares, que sao tratados como inexistentes.

    Parte-se, na sociedade capitalista ocidental, da ideia de que o conhecimento tradicional e baseado em experiencias praticas locais, isoladas do mundo moderno contemporaneo. Reduz-se os conhecimentos tradicionais a supersticoes e a irracionalidades subordinadas ao saber cientifico. Mas esquece-se de perguntar por que estas praticas sao assim consideradas. Neste sentido, uma relacao de poder permanece oculta, gerando mais distorcoes.

    A diversidade etnica e cultural e, na verdade, sinonimo de riqueza de formas e de multiplicidades de comportamentos e de experiencias sociais, que precisam ser consideradas dentro de sua propria realidade. E impossivel entender o tempo dos povos indigenas sob a perspectiva do tempo do capitalismo. Do mesmo modo, suas praticas so podem ser entendidas dentro de um contexto situacional, assim como o capitalismo moderno ocidental so pode ser entendido dentro de sua propria conjuntura.

    O colonialismo foi percebido pela modernidade ocidental como parte de uma missao civilizadora, enquanto que para os povos colonizados representou uma forma de violencia.

    O sistema colonial impos aos povos originarios uma condicao de exploracao economica, dominacao politica e subjugacao cultural. Historicamente, a falta de reconhecimento dos povos tradicionais e de seus saberes se traduziu em formas de apropriacao e violencia, atraves da criminalizacao das praticas culturais, da imposicao do direito oficial e da marginalizacao da diferenca.

    Al negar la voz del otro, no podemos aprender de el y tampoco fecundarlo. Compartir, que significa dar y recibir, es solo posible a traves del reconocimiento del otro. Sin reconocimiento no hay participacion. Y sin participacion no se pueden lograr consensos, no hay construccion de un futuro comun (Eberhard, 2002: 259). Como se pode perceber, o fim do colonialismo politico nao significou que diversas formas de colonizacao (social e cultural) deixaram de existir (Santos, 2009a). Ao passo que o colonialismo externo cessou, o colonialismo sobre determinados povos permaneceu dentro dos Estados independentes. Esta nova forma de colonialismo existente no pos-colonialismo tem origem na ignorancia colonial e consiste na recusa do reconhecimento do outro como igual e na conversao dos sujeitos em objetos. Neste contexto, o que justificou a intervencao colonial e a utilizacao da estrategia de dominacao foi o caracter inferior dos indigenas, conforme o pensamento evolucionista da epoca. Contudo, o evolucionismo permanece de forma ressignificada, considerando os povos tradicionais como museus vivos. "A transformacao do barbaro em civilizado exigia que este passasse a pensar a partir das ideias da sociedade colonial, usando as referencias do centro, evitando-se qualquer questionamento reflexivo sobre o caracter ambiguo da relacao colonial" (Meneses, 2008:2).

    Ao desqualificar e descaracterizar os povos tradicionais asseguram-se objetivos...

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