O reconhecimento das normas da OIT como fonte direta do Direito do Trabalho: caso EMBRAER

AutorValdete Souto Severo
Ocupação do AutorJuíza do Trabalho, Mestre em Direitos Fundamentais pela PUC/RS, professora e vice-diretora na FEMARGS/RS
Páginas91-107

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Introdução

Já tivemos a oportunidade de investigar e escrever sobre o caso EMBRAER, julgado pelo TST em 2009, por sua característica de paradigma de uma nova visão do Direito do Trabalho, comprometida com o direito internacional do trabalho, em especial com as normas emanadas pela OIT. Nada obstante a timidez revelada no caso concreto, já que o TST não se posiciona de forma imediatamente favorável à aplicação direta das normas internacionais no âmbito interno, a decisão revela um importante amadurecimento.

Estamos finalmente percebendo a importância das normas internacionais para a construção de um Direito do Trabalho mais comprometido com o princípio da proteção que o inspira e justifica, inclusive em âmbito supranacional. A Organização Internacional do Trabalho, criada em 1919, aprovou sua Constituição, revisada na 29ª reunião da Conferência Internacional do Trabalho, em Montreal em 1946, reconhecendo, em seu preâmbulo, que: “a não adoção por qualquer nação de um regime de trabalho realmente humano cria obstáculos aos esforços das outras nações desejosas de melhorar a sorte dos trabalhadores nos seus próprios territórios”189. (sem grifo no original)

As premissas de criação desse organismo internacional de proteção foram o reconhecimento de que “existem condições de trabalho que implicam, para grande número de indivíduos, miséria e privações”, de que “o descontentamento que daí decorre põe em perigo a paz e a harmonia universais”, bem como da urgência em

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“melhorar essas condições no que se refere, por exemplo, à regulamentação das horas de trabalho, à fixação de uma duração máxima do dia e da semana de trabalho, ao recrutamento da mão de obra, à luta contra o desemprego, à garantia de um salário que assegure condições de existência convenientes, à proteção dos trabalhadores contra as moléstias graves ou profissionais e os acidentes do trabalho, à proteção das crianças, dos adolescentes e das mulheres, às pensões de velhice e de invalidez, à defesa dos interesses dos trabalhadores empregados no estrangeiro, à afirmação do princípio “para igual trabalho, mesmo salário”, à afirmação do princípio de liberdade sindical, à organização do ensino profissional e técnico, e outras medidas análogas”.

O Brasil é membro da OIT, circunstância da qual decorre o necessário reconhecimento das premissas antes elencadas, bem como a necessidade de respeito e aplicação das normas internacionais de proteção, em seu âmbito interno. Ainda assim, não ratificou a integralidade das convenções190, não observa muitas de suas recomendações, e, em uma atitude certamente contrária à lógica que inspira a existência mesma desse organismo internacional, denunciou convenções como a de n. 158 da OIT, cuja importância é incontestável.

O STF já tem voto em Ação Direta de Inconstitucionalidade referindo a compatibilidade dos termos do art. 7º, inc. I, da Constituição, com o dever de motivação da despedida referido na Convenção n. 158 da OIT, mesmo que essa convenção tenha sido denunciada pelo Brasil. Com isso, deu-se um passo importante para o reconhecimento da verdadeira função desse organismo internacional em âmbito interno, consagrando a noção, de resto inscrita em nossa Constituição, de que normas internacionais acerca de direitos humanos têm aplicação imediata.

A decisão do TST sobre o caso EMBRAER, embora de injustificável timidez, vem ao encontro desse entendimento e também representa um passo fundamental para a eficácia de todos os direitos trabalhistas fundamentais e para o reconhecimento de uma dimensão mais alargada do direito internacional do trabalho. É dessa necessidade de aplicação imediata das normas da OIT ao ordenamento brasileiro, independentemente de ratificação ou denúncia, que falaremos brevemente neste artigo, a partir do estudo desse caso específico.

1. Caso EMBRAER: um passo importante para a ampliação da aplicação de normas internacionais no âmbito interno

A decisão que iremos examinar foi proferida em dissídio coletivo, com o objetivo de solucionar lide relativa à despedida coletiva de mais de 4.000 trabalhadores da EMBRAER, em Campinas. A ação, proposta pelo Sindicato dos Metalúrgicos de São José dos Campos e Região, Sindicato dos Metalúrgicos de

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Botucatu e Federação dos Metalúrgicos de São Paulo, em face da Empresa Brasileira de Aeronáutica — EMBRAER e ELEB EMBRAER LTDA, propunha a declaração da “antijuridicidade” do ato empresarial de demissão de cerca de vinte por cento do total de empregados, sob alegação de “necessidade de redução dos custos perante a crise cíclica da economia”.

Na petição inicial, os suscitantes afirmam violação ao direito à informação e à boa-fé, aos princípios democráticos da relação entre capital e trabalho no mundo contemporâneo, e às normas internacionais, tais como a Convenção n. 98 da OIT e as Recomendações ns. 94 e 163, também da OIT. Referem a negativa da empresa em negociar com os Sindicatos e o dever da empresa de “comunicar de forma clara e transparente a decisão de demitir”, o que permitiria buscar alternativas que evitassem a dispensa coletiva. Há alegação de ofensa “aos valores, princípios e regras constitucionais”, tais como dignidade da pessoa humana, valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (CF, art. 1º, III e IV), acesso à informação (CF, art. 5º, XIV), reconhecimento das convenções e acordos coletivos de trabalho (CF, art. 7º, XXVI), representação sindical e participação obrigatória dos sindicatos nas negociações (CF, art. 8º, III e VI). Há, ainda, alegação de prática de ato ilícito (CC, art. 187) e de ofensa à boa-fé (CC, art. 422), bem como de inexistência do fato alegado (crise), capaz de justificar o ato de dispensa.

Os motivos para a despedida dos trabalhadores, de acordo com a EMBRAER, foram a redução de pelo menos trinta por cento das encomendas de aviões e a circunstância de que sua clientela é ligada à área internacional, especialmente aos Estados Unidos e à Europa, países diretamente afetados pela crise econômica que se desencadeou em 2008.

Concedida liminar para determinar a suspensão das dispensas, em 19.2.2009, realizou-se audiência para tentativa de conciliação. A proposta foi de suspensão do contrato de trabalho e oferta de qualificação profissional aos empregados, com duração de cinco meses, a ser custeada com recursos do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT). A Embraer pagaria 20% do salário-base como ajuda de custo durante esse período. Pela segunda proposta, haveria a revisão do contrato de trabalho com uma indenização equivalente a um mês de aviso prévio, limitada a 15 meses. Dessa forma, caso o trabalhador tivesse exercido atividade na empresa por 20 anos, por exemplo, teria direito a 15 salários como indenização. Essa segunda proposta também prevê a garantia de preferência contratual no caso da criação dos mesmos postos de trabalho nos próximos dois anos, além da manutenção do plano familiar por 12 meses e garantia de estabilidade de 120 dias para quem não tivesse sido dispensado. As propostas não foram aceitas, porque a empresa não pretendia manter os postos de trabalho.

Em exame do dissídio coletivo, o TRT da 15ª Região decidiu:

CRISE ECONÔMICA — DEMISSÃO EM MASSA — AUSÊNCIA DE PRÉVIA NEGOCIAÇÃO COLETIVA — ABUSIVIDADE — COMPENSAÇÃO FINANCEIRA — PERTINÊNCIA. As demissões coletivas ou em massa relacionadas a uma causa objetiva

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da empresa, de ordem técnico-estrutural ou econômico-conjuntural, como a atual crise econômica internacional, não podem prescindir de um tratamento jurídico de proteção aos empregados, com maior amplitude do que se dá para as demissões individuais e sem justa causa, por ser esta insuficiente, ante a gravidade e o impacto socioeconômico do fato. Assim, governos, empresas e sindicatos devem ser criativos na construção de normas que criem mecanismos que, concreta e efetivamente, minimizem os efeitos da dispensa coletiva de trabalhadores pelas empresas. À míngua de legislação específica que preveja procedimento preventivo, o único caminho é a negociação coletiva prévia entre a empresa e os sindicatos profissionais. Submetido o fato à apreciação do Poder Judiciário, sopesando os interesses em jogo: liberdade de iniciativa e dignidade da pessoa humana do cidadão trabalhador, cabe-lhe proferir decisão que preserve o equilíbrio de tais valores. Infelizmente não há no Brasil, a exemplo da União Europeia (Directiva 98/59), Argentina (Ley n. 24.013/91), Espanha (Ley del Estatuto de los Trabajadores de 1995), França (Lei do Trabalho de 1995), Itália (Lei n. 223/91), México (Ley Federal del Trabajo de 1970, cf. texto vigente — última reforma foi publicada no DOF de 17.1.2006) e Portugal (Código do Trabalho), legislação que crie procedimentos de escalonamento de demissões que levem em conta o tempo de serviço na empresa, a idade, os encargos familiares, ou aqueles em que a empresa necessite de autorização de autoridade, ou de um período de consultas aos sindicatos profissionais, podendo culminar com previsão de períodos de reciclagens, suspensão temporária dos contratos, aviso prévio prolongado, indenizações, etc. No caso, a EMBRAER efetuou a demissão de 20% dos seus empregados, mais de 4.200 trabalhadores, sob o argumento de que a crise econômica mundial afetou diretamente suas atividades, porque totalmente dependentes do mercado internacional, especialmente dos Estados Unidos da América, matriz da atual crise. Na ausência de negociação prévia e diante do insucesso da conciliação, na fase judicial só resta a esta Eg. Corte, finalmente, decidir com fundamento no...

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