Os Direitos do Recluso Segundo a Jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem

AutorPaulo Pinto de Albuquerque
CargoProfessor Doutor da Faculdade de Direito Universidade Católica (Portugal); Professor Visitante da Faculdade de Direito de Illinois (EUA)
Páginas48-74

    Foi mantido o texto original enviado pelo autor, de forma apenas a se fazer as adequações de forma para a publicação em Panóptica.

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1. O direito à vida

O direito à vida do recluso foi afirmado pelo Tribunal em face de agressões de um outro recluso no caso Edwards v. Reino Unido, de 2002, em face de supostas agressões do recluso pelos seus detentores no caso Anguelova v. Bulgária, de 2002, em face de auto-agressões do recluso no caso Keenan v. Reino Unido, de 2001, e em face do desaparecimento do detido no caso Timurtas v. Turquia, de 2000. No primeiro caso, o artigo 2 da Convenção foi violado pela administração prisional por o recluso ter sido espancado até à morte por um companheiro de cela com antecedentes psiquiátricos, sem que a administração prisional tenha feito um escrutínio prévio da adequação do internamento de ambos na mesma cela. O artigo 2 foi também violado processualmente por não ter sido realizada uma investigação capaz ao incidente, sendo condição para tal que ela fosse aberta aos pais do falecido e que as testemunhas pudessem ser compelidas a depor.

No caso Anguelova v. Bulgária, o artigo 2 foi violado quer por falta de uma explicação pelo Estado das circunstâncias em que ocorreu a morte do detido, quer por omissão de assistência médica que se provou em um dos relatórios médicos juntos ter sido fatal, quer ainda por ocorrência de uma investigação parcial e lacunosa das causas da morte do detido em virtude de uma autópsia deficiente, da omissão de perguntas decisivas aos responsáveis pelo detido, de uma reconstrução parcial dos factos e da falta de esclarecimento das contradições entre dois relatórios médicos. Assim, o Tribunal identificou claramente quatro obrigações para os Estados, em caso de morte de um detido: a obrigação de proteger a vida do detido, a obrigação de proceder a uma investigação adequada da morte do detido, a obrigação de desaprovar as condutas inadequadas das autoridades responsáveis pela verificação do resultado da morte e a obrigação de fornecer uma explicação razoável das causas da morte do detido. A violação do artigo 2, com base no desrespeito de uma ou mais destas obrigações, pode ainda concorrer com a violação do artigo 3, pela verificação de várias lesões no corpo de detido que não fossem em siPage 50 causais da morte, mas tivessem um grau de severidade suficientemente sério, e com a violação do artigo 13, por falta de remédio nacional para identificar e punir os responsáveis e compensar a lesão causada a um ou mais direitos convencionais.

No caso Keenan v. Reino Unido, o artigo 2 não foi violado, uma vez que o recluso doente mental se suicidou apesar de a administração prisional ter procurado responder por diversos modos, designadamente através de supervisão médica diária, aos problemas psíquicos do recluso. O Tribunal concluiu, no entanto, ter havido uma violação do artigo 3 da Convenção por falta de monitorização efectiva da condição do recluso e deficiente tratamento médico, designadamente por falta de informação psiquiátrica, e ainda por desadequação da punição disciplinar de um recluso doente mental com vinte e oito dias adicionais de reclusão quando faltavam nove dias para a sua libertação. Diferentemente, no caso Tanribilir v. Turquia, de 2000, o Tribunal considerou não ter o suicídio do recluso decorrido de uma violação material nem processual do artigo 2, nem ainda de uma violação do artigo 3, por o recluso ter sido submetido a revista e lhe terem sido retirados o cinto e os fios dos sapatos à entrada da prisão e ele se ter suicidado de modo imprevisto e silencioso, usando uma corda feita com pedaços rasgados da sua camisa. A investigação judicial detalhada do incidente não mereceu reparo do Tribunal, apesar da a mãe do falecido não ter participado na mesma, uma vez que ela não tinha quaisquer elementos adicionais de prova úteis para a investigação.

No caso Timurtas v. Turquia, de 2000, o Tribunal considerou verificada uma violação do artigo 2, por força do desaparecimento do detido durante seis anos e seis meses na sequência de uma detenção por forças de segurança, da falta de qualquer prova documental do registo da detenção e da inexistência de explicação plausível por parte das autoridades nacionais para o sucedido. A par desta violação substantiva do preceito convencional protector do direito à vida, verificava-se também uma violação processual do mesmo preceito em virtude de a investigação realizada pelas autoridades nacionais ter começadoPage 51 dois anos após o desaparecimento, os locais de detenção em causa não terem sido inspeccionados pelos investigadores e os responsáveis pela força que procedeu à detenção não terem sido inquiridos sobre o que se passou no dia da detenção, bem como uma violação do artigo 5, por a detenção não ter sido registada. Deste modo, afastou-se a jurisprudência anteriormente fixada no caso Kurt v. Turquia, de 1998, segundo a qual o desaparecimento de um detido na sequência de uma detenção não documentada por forças de segurança constituía somente uma violação do artigo 5.

2. O direito à integridade física

A conduta da autoridade prisional ou detentiva, bem como as condições de habitabilidade dos estabelecimentos, têm sido censuradas em diversas outras circunstâncias como violando a protecção dada ao recluso pelo artigo 3 da Convenção.

O caso Irlanda v. Reino Unido, de 1978, constituiu o primeiro momento em que o Tribunal condenou os maus tratos causados a reclusos, in casu, certas técnicas de provocação de stress nos reclusos, tais como a manutenção de pé durante horas, o encapuçamento, a sujeição a barulho e a privação de sono, alimentação e bebida, considerando-as como tratamento desumano e degradante. Este precedente foi desenvolvido sobretudo na jurisprudência dos casos turcos e dos casos gregos.

No caso Aksoy v. Turquia, de 1996, o Tribunal classificou como tortura a prática da “suspensão palestiana” a que tinha sido submetido o requerente aquando da sua reclusão, consistindo na suspensão do corpo com um corda atada aos braços colocados por detrás das costas, o que o deixou com os braços paralisados por algum tempo.

No caso Aydin v. Turquia, de 1997, a requerente, jovem de dezassete anos de idade aquando da sua detenção pela polícia, tinha sido violada, mantida comPage 52 os olhos vendados, agredida, exibida nua e encharcada com jactos de água de alta pressão, classificando o Tribunal pela primeira vez actos de violência sexual cometidos por membros da autoridade pública como tortura.

No caso Akkoç v. Turquia, de 2000, o Tribunal condenou o Estado requerido pela prática de tortura na pessoa da requerente, que tinha sido submetida durante a sua reclusão a choques eléctricos, a tratamento com água fria e quente e a murros na cabeça, acompanhados por métodos de pressão psicológica e, em particular, a ameaças de maus tratos aos seus filhos, causando na requerente uma desordem psicológica de stress pós-traumático e exigindo sujeição da requerente a medicação.

No caso Peers v. Grécia, de 2001, o Tribunal classificou como tratamento degradante a reclusão do primeiro requerente durante cerca de dois meses em uma cela construída para um só ocupante, mas que o requerente tinha de dividir com outro recluso, não tendo a cela ventilação nem janela e encontrando-se fechada durante a tarde e a noite, o que a tornava então excessivamente quente, ao que acrescia que após o fecho da porta o requerente tinha de fazer as suas necessidades fisiológicas na sua cela diante do outro recluso. No caso Dougoz v. Grécia, de 2001, o requerente tinha sido colocado em uma cela sobrelotada com condições sanitárias desadequadas e camas em número insuficiente e sem ar fresco, luz do dia, água quente e possibilidade de realização de exercício, por um período de vários meses. Nesse ano de 2001, o Tribunal decidiu ainda o caso Valasinas v. Lituânia, considerando que um recluso que tinha sido submetido a uma revista com desnudamento realizada na frente de uma pessoa do sexo oposto tinha sido objecto de tratamento degradante e humilhante.

No caso Kalashnikov v. Rússia, de 2002, o requerente tinha sido detido durante quarto anos e dez meses em uma cela sobrelotada, com 0,9 a 1,9 metros quadrados por recluso, tendo os reclusos que dormir por turnos de oito horas por recluso, com a luz artificial sempre acesa, com períodos de apenas uma ouPage 53 duas horas diárias de exercício fora da cela, encontrando-se na mesma cela do requerente outros reclusos infectados com sífilis e tuberculose e cela em si infestada com vermes e com sanitários sujos, delapidados e não reservados, tendo causado ao requerente distonia neurocirculatória, síndroma asteno-neurótico, gastroduodenite crónica, infecção nos pés e mãos e micose. O Tribunal estabeleceu em sete metros quadrados por recluso a área mínima aceitável das celas, atendendo a uma posição prévia do CPT neste sentido.

No caso Aktas v. Turquia, de 2003, o recluso faleceu apresentando no corpo marcas correspondentes à prática de asfixia mecânica, resultantes ou de o seu peito ter sido apertado de modo a impedir a respiração, ou de crucificação ou de “suspensão palestiniana”, tendo o Tribunal concluído pela verificação de tortura, uma vez que inferiu dos autos que o recluso foi submetido a esta prática com o propósito de obter informações ou extrair uma confissão. No caso Khokhlich v. Ucrânia, de 2003, o requerente tinha sido detido na cela vinte e quatro horas por dia, com espaço muito restrito, com as janelas sempre fechadas e sem quaisquer possibilidades de exercício fora da cela e de ocupação ou contacto humano durante um período de vinte e quatro meses. No caso Van der Ven v. Holanda, de 2003, o...

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