Realização dos direitos humanos no brasil

AutorJosé Claudio Monteiro De Brito Filho
Páginas99-119

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Meu principal objetivo nesse capítulo é discutir, como dito logo ao final do Capítulo 5, a realização dos Direitos Humanos, ou seja, a transformação do conjunto (de normas) que recebe essa denominação em algo vivo, que possa ser manejado pelas pessoas, até porque compõem esse conjunto direitos que primam pela essencialidade. Farei isso, como indiquei, a partir da característica da exigibilidade, focando no caso específico do Brasil, no plano interno.

A esse respeito, posso adiantar que, em minha visão, devem ser eliminados todos os obstáculos, até os teóricos, que têm sido apresentados para negar a concretização dos Direitos Humanos, por serem eles absolutamente incompatíveis com a noção primordial dos Direitos Humanos, além de com o seu fundamento, a dignidade da pessoa humana.

Por isso, quero apresentar uma afirmação feita por Ingo Wolfgang Sarlet que sintetiza o que penso. Ela é feita considerando os Direitos Fundamentais, mas, acredito, aplica-se sem restrições aos Direitos Humanos. Diz o autor: “[...]Sem que se reconheçam à pessoa humana os direitos fundamentais que lhe são inerentes, em verdade estar-se-á negando-lhe a própria dignidade”7.

Antes, todavia, é preciso discutir como se dá a incorporação dos tratados de Direitos Humanos no ordenamento jurídico brasileiro, o que será feito no primeiro item deste capítulo.

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Isso é necessário não somente para que se verifique como e partir de quando os tratados de Direitos Humanos podem ser considerados como exigíveis no Brasil, mas, também qual o seu status na hierarquia das normas componentes do ordenamento jurídico, o que, como será observado, é uma questão ainda em aberto, tanto no plano doutrinário como na jurisprudência.

Incorporação dos tratados de direitos humanos ao ordenamento jurídico brasileiro

Antes de tudo, creio que é preciso registrar como se dá a relação entre as normas de direito internacional e as normas de direito interno.

Segundo Paulo Henrique Gonçalves Portela, no geral, a “doutrina examina a matéria com base em duas teorias: o dualismo e o monismo”. Afirma, todavia, que, certas particularidades têm levado a que se admitam outras possibilidades, entre elas a “primazia da norma mais favorável ao indivíduo, que prevalece dentro do Direito Internacional dos Direitos Humanos”8.

Seguindo as lições desse autor, verifica-se que, para o dualismo, o Direito Internacional e o Direito Interno são distintos e independentes. Assim, para que um tratado possa produzir efeitos dentro de um Estado soberano, precisa ser incorporado ao direito desse Estado, por intermédio de um instrumento normativo distinto, e próprio de seu direito interno, com o mesmo conteúdo do tratado. Pros-segue dizendo que há, ainda, o que se denomina dualismo moderado, quando não há necessidade de aprovar um instrumento normativo próprio, como na hipótese anterior, precisando haver, somente, um procedimento específico para a incorporação do tratado que, “normalmente inclui apenas a aprovação do parlamento e, posteriormente, a ratificação do Chefe de Estado, bem como, no caso do Brasil, um decreto de promulgação do Presidente da República, que inclui o ato internacional na ordem jurídica nacional”9.

Já a respeito do monismo, Portela leciona que, para essa teoria, “existe apenas uma ordem jurídica, com normas internacionais e internas, interdependentes entre si”. Havendo conflito, afirma que há duas teorias para determinar qual norma prevalecerá: o monismo internacionalista, em que há primazia da norma internacional, e o monismo nacionalista, quando ocorre o contrário. Conclui, mais adiante, que o Brasil adota elementos das duas teorias (monismo e dualismo), fazendo a seguinte observação:

[...]Fica evidente, portanto, que a prática brasileira em relação aos conflitos entre as normas internacionais e internas herdará aspectos do dualismo e do

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monismo e, [...], incorporará soluções próprias, que não permitirão, em nosso ponto de vista, definir qual a teoria que o Brasil adota, sendo mais pertinente afirma que o Estado brasileiro recorre a elementos de ambas as teorias10.

Encerrando essa discussão, Portela fala de outras possibilidades, para introduzir a questão da primazia da norma mais favorável, princípio que trabalha com a ideia de que, havendo conflito, a primazia é da norma mais favorável à vítima/ ao indivíduo, prevalecendo a “que melhor promova a dignidade humana”. Para o autor, o princípio se fundamenta “na prevalência do imperativo da proteção da pessoa humana”, pelo que, nesses casos, não importará se a norma é internacional ou interna, pois ela prevalecerá simplesmente porque protege, da melhor forma, a dignidade11.

Esse entendimento, a propósito, pode ser visualizado na decisão abaixo:

Ilegitimidade jurídica da decretação da prisão civil do depositário infiel. Não mais subsiste, no sistema normativo brasileiro, a prisão civil por infidelidade depositária, independentemente da modalidade de depósito, trate-se de depósito voluntário (convencional) ou cuide-se de depósito necessário. Precedentes. Tratados internacionais de direitos humanos: as suas relações com o direito interno brasileiro e a questão de sua posição hierárquica. A Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Art. 7º, n. 7). Caráter subordinante dos tratados inter-nacionais em matéria de direitos humanos e o sistema de proteção dos direitos básicos da pessoa humana. Relações entre o direito interno brasileiro e as convenções internacionais de direitos humanos (CF, art. 5º, §§ 2º e 3º). Precedentes. Posição hierárquica dos tratados internacionais de direitos humanos no ordenamento positivo interno do Brasil: natureza constitucional ou caráter de supralegalidade? Entendimento do relator, Min. Celso de Mello, que atribui hierarquia constitucional às convenções internacionais em matéria de direitos humanos. [...] Hermenêutica e direitos humanos: a norma mais favorável como critério que deve reger a interpretação do Poder Judiciário. Os magistrados e Tribunais, no exercício de sua atividade interpretativa, especialmente no âmbito dos tratados internacionais de direitos humanos, devem observar um princípio hermenêutico básico (tal como aquele proclamado no art. 29 da Convenção Americana de Direitos Humanos), consistente em atribuir primazia à norma que se revele mais favorável à pessoa humana, em ordem a dispensar-lhe a mais ampla proteção jurídica. O Poder Judiciário, nesse processo hermenêutico que prestigia o critério da norma mais favorável (que tanto pode ser aquela prevista no tratado internacional como a que se acha positivada no próprio direito interno do Estado), deverá extrair a máxima eficácia das declarações internacionais e das

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proclamações constitucionais de direitos, como forma de viabilizar o acesso dos indivíduos e dos grupos sociais, notadamente os mais vulneráveis, a sistemas institucionalizados de proteção aos direitos fundamentais da pessoa humana, sob pena de a liberdade, a tolerância e o respeito à alteridade humana tornarem-se palavras vãs. Aplicação, ao caso, do art. 7º, n. 7, c/c o art. 29, ambos da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica): um caso típico de primazia da regra mais favorável à proteção efetiva do ser humano12.

Francisco Rezek, de sua parte, depois de afirmar, a respeito do sistema dualista, a independência do Direito Internacional e do Direito Interno de cada Estado, “de tal modo que a validade jurídica de uma norma interna não se condiciona à sua sintonia com a ordem internacional”, faz menção às duas correntes do monismo mencionadas por Portela, indicando ao final que, não obstante não haja suporte doutrinário fora do antigo contexto soviético, o monismo nacionalista “norteia as convicções judiciárias em inúmeros países do ocidente – incluídos o Brasil e os Estados Unidos da América –, quando os tribunais enfrentam o problema do conflito entre normas de direito internacional e de direito público”13.

Já Flávia Piovesan, tratando da incorporação dos tratados, primeiro relembra a sistemática constitucional a respeito, observando que “os tratados internacionais demandam, para seu aperfeiçoamento, um ato complexo, onde se integram a vontade do Presidente da República, que os celebra, e a do Congresso Nacional, que os aprova, mediante decreto legislativo”14.

Avançando, afirma que a doutrina dominante, no Brasil, tem entendido pela doutrina dualista, pelo que seria necessária a edição de um ato normativo nacional para que os tratados produzam efeitos no ordenamento jurídico do País. Afirma ainda que, “[...]no caso brasileiro, esse ato tem sido um decreto de execução, adotado pelo Presidente da República, com a finalidade de promulgar o tratado ratificado na ordem jurídica interna, conferindo-lhe execução, cumprimento e publicidade no âmbito interno”15.

A autora, todavia, entende que isso não se aplica aos tratados de Direitos Humanos, em razão da aplicabilidade imediata prevista no art. 5º, § 1º, da Constituição da República, pelo que, ratificado o tratado, caso verse ele sobre Direitos Humanos, já se irradiam seus efeitos no âmbito interno, “dispensando-se a edição de decreto de execução”. Para ela, então, o Brasil adota um sistema misto; dualista para os tratados relativos a outras matérias, e monista para os de Direitos Humanos16.

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Entende também, repetindo ideia sua, já vista neste livro, quando discuti a superioridade normativa, que os tratados de direitos humanos, em razão do art. 5º, § 2º, do texto constitucional, possuem hierarquia de norma constitucional, enquanto os demais decretos tem força de norma infraconstitucional17. Para

Piovesan, então, haveria diferenças significativas entre os tratados de Direitos Humanos e os demais, pois os primeiros ingressariam no ordenamento jurídico brasileiro sem necessitar de um decreto de execução, e com status constitucional.

A...

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