O realismo radical da teoria pura do direito

AutorPierluigi Chiassoni
Páginas513-544
513
Capítulo VI
O REALISMO RADICAL DA TEORIA
PURA DO DIREITO
“In diesem Sinne, hat der Reine Rechtslehre
eine usgesprochen antiideologische Tendenz (…).
Sie will das Recht darstellen, so wie es ist,
nicht so, wie es sein soll: sie fragt nach dem
wirklichen und möglichen, nicht nach dem
„idealen“, „richtigen“ Recht. Sie ist in diesem
Sinne eine radikale realistische Rechtstheorie”.
H. Kelsen, Reine Rechtslehre607
Sumário: 1. Uma teoria enigmática. 2. O realismo radical da teoria
pura do direito: o argumento em abstrato. 2.1 O realismo jurídico
607 La dottrina pura del diritto. Torino: Einaudi, 1966, p. 128; grosso modo, as mesmas
palavras são recorrentes em outros escritos, como por exemplo: Id., La teoría pura del
derecho. (1934) México: Colofon, 1990 § 9: “Estas tendencias ideológicas, cuyos propósitos
o consecuencias políticas están a la vista, dominan la actual ciencia del Derecho, incluso
después de la aparente superación del jusnaturalismo. Contra estas tendencias dirígese la
teoría jurídica pura. Ella aspira a exponer el Derecho tal como es, sin legitimarlo por su
justicia ni descalificarlo por su injusticia; pregúntase por el Derecho real y posible, no por
el Derecho justo. En este sentido, es una teoría radicalmente realista”; Id., KELSEN,
Hans. Lineamenti di dottrina pura del diritto. Torino: Einaudi, 1967, § 9; Id., General Theory
of Law and State. Cambridge: Harvard University Press, 1945, p. xiv.
514
PIERLUIGI CHIASSONI
em poucas palavras. 2.2 A teoria pura do direito como filosofia
jusrealista. 3. O realismo radical da teoria pura do direito: o argumento
no detalhe. 3.1 “Ciência jurídica”. 3.2 O realismo da epistemologia
jurídica pura. 4. Algumas conclusões.
1. UMA TEORIA ENIGMÁTICA
Como um oráculo, a teoria pura do direito continua a derramar
enigmas sobre seus visitantes. Os enigmas para os quais tentarei, neste
capítulo, articular uma solução são dois. O primeiro se atém à identifi-
cação de sua orientação epistemológica. O segundo se atém à possibili-
dade de oferecer uma reconstrução da teoria kelseniana da ciência jurí-
dica que a apresente como uma teoria coerente, bem construída segun-
do seus próprios princípios.
Em um celebérrimo ensaio, Norberto Bobbio distingue duas
formas de produção kelseniana: uma dedicada aos erros da crítica, a
outra à crítica dos erros.608 No presente capítulo percorrerei uma tercei-
ra via, menos ambiciosa: a via da hermenêutica analítica, que cruza e às
vezes segue junto daquelas. Nessa perspectiva, me parece se pode chegar
a sustentar as seguintes teses sobre os problemas acima mencionados:
1. a teoria pura do direito caracteriza-se, no âmbito de seu intei-
ro desenvolvimento e, explicitamente, a partir das obras dos anos trinta,
por uma orientação epistemológica favorável a um positivismo jurídico
radicalmente realista;
2. a orientação realista explica seja o que, em sessenta anos de
pesquisas, Kelsen manteve firme em relação ao direito e ao conheci-
mento jurídico, seja o que, contrariamente, ele modificou, muitas vezes
de maneira dramática e repentina (como se viu no cap. V, § 3);609
608 BOBBIO, Norberto. “La teoria pura del diritto e i suoi critici”. (1954) Diritto e pote:
Saggi su Kelsen. Napoli: Esi, 1992, p. 107.
609 Pense-se, por exemplo: 1) na introdução da ideia de Stufenbau, que representa o
núcleo da teoria geral do direito kelseniana; 2) na introdução da ideia de uma
Grundnorm, que Kelsen manteve até o final, caracterizando-a ao longo do tempo como
515
CAPÍTULO VI – O REALISMO RADICAL DA TEORIA PURA DO DIREITO
3. ingredientes epistemológicos e teses teóricas – o (neo)kantismo,
a distinção entre Sein e Sollen, a crítica ao ecletismo e às ideologias, a
revisitação à concessão construcionista da ciência jurídica, a adesão ao
postulado de a-valoração, o logicismo, a teoria da Grundnorm, a ideia de
Stufenbau, etc. – aplicam-se à teoria pura do direito não mais por si
mesmos, mas sim, na medida que e com a finalidade de que, contribuam
à edificação e à defesa de um positivismo jurídico realista, como sugere
a oposta sorte ocorrida ao logicismo, de um lado, e ao postulado de a-
valoração e à ideia de Stufenbau, de outro;
4. à luz da orientação realista, muitas das discrepâncias, antinomias e
incongruências que os kelsenólogos pretenderam destacar no grande livro da
teoria pura, entre os seus diversos ingredientes na mesma ou em diversas
fases de seu desenvolvimento, podem ser lidas como provas da luta incessan-
te, cravejada de clarificações, precisões, modificações, confirmações, renún-
cias, que Kelsen realizou contra sua própria teoria, visando um conhecimen-
to autenticamente científico do direito, caracterizado por “objetividade e
exatidão”, e de uma teoria jurídica anti-ideológica e empiricamente fundada;
5. a principal peculiaridade do realismo kelseniano em compara-
ção aos coevos realismos americano e escandinavo, que reflete a pro-
funda influência de seu contexto cultural, consiste na tentativa de ela-
borar um modelo realista de ciência jurídica normativa, não reduzida a
sociologia do direito, ainda que sociologicamente orientada e sinérgica
a ela, mas de modo a constituir uma versão genuinamente científica da
hipótese e, por fim, como ficção epistêmica, privada do papel de supremo princípio
interpretativo construído na fase do neokantismo construcionista forte, até o início dos
anos trinta; 3) na rejeição do modelo epistêmico neokantiano originário de ciência
jurídica, entre o fim dos anos trinta e o início dos anos quarenta; 4) na formulação e,
na quase imediata rejeição, do “logicismo”, datável entre a publicação da segunda edição
da Reine Rechtslehre (abril de 1960), de um lado, e a carta a Ulrich Klug de 4 de julho
de 1960 (In: KELSEN, Hans; KLUG, Ulrich. Normas jurídicas y análisis lógico. Madrid:
Centro de Estudios Constitucionales, 1988, pp. 70-80), a publicação de Derogation, pp.
339-355, e de KELSEN, Hans. ”Recht und Logik”. Forum, 1965. In: COMANDUCCI,
Paolo; GUASTINI, Riccardo (coord.). L’analisi del ragionamento giuridico. vol. 2. Torino:
Giappichelli, 1989, pp. 421-425, 495-500, 579, de outro. Sobre esses pontos, Cf. supra,
cap. V, § 3.

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT