O real do direito: sobre a filosofia do direito de Gilles Deleuze

AutorMurilo Duarte Costa Corrêa
CargoProfessor Adjunto de Teoria Política da Faculdade de Direito e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Estadual de Ponta Grossa
Páginas182-205

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O real do direito: sobre a filosofia do direito de Gilles Deleuze

The reality of law: on Gilles Deleuze’s Legal Theory

Murilo Duarte Costa Corrêa*
Universidade Estadual de Ponta Grossa, Ponta Grossa-PR, Brasil

1. Introdução

Na última década, cresceu o interesse dos filósofos do direito sobre a obra de Gilles Deleuze.1Indiciária disso é a profusão de trabalhos, no Brasil como no exterior, que ora se apropriam de problemas, de blocos conceituais ou do vocabulário da filosofia de Deleuze, ora procuram desenvolver, de modo radicalmente inventivo, séries de conceitos ligados à Filosofia do Direito. Em geral, essas aproximações resultam na crítica e na gênese renovadas de uma teoria dos direitos e do julgamento. Outros autores realizam um esforço para identificar uma filosofia do direito independente dos axiomas de seu sistema filosófico mais geral, enquanto trabalhos de caráter

* Professor Adjunto de Teoria Política da Faculdade de Direito e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Estadual de Ponta Grossa. Affiliated researcher da Faculty of Law and Criminology da Vrije Universiteit Brussel, instituição na qual realizou estágio de pós-doutorado (2016-2017), com pesquisa intitulada “The political uses of law: on Gilles Deleuze’s philosophy of the social field”. Coordenador do Labratório de Pesquisa Interdisciplinar em Teoria Social, Teoria Política e Pós-Estruturalismo (LABTESP/UEPG). Doutor (2013) e Mestre (2009) em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Universidade de São Paulo e pela Universidade Federal de Santa Catarina, respectivamente
1 Este é, também, o diagnóstico de Edward MUSSAWIR, 2011, p. x, no cenário anglo-americano: “A recepção da obra de Gilles Deleuze cresceu consideravelmente nos últimos anos na cena da academia jurídica crítica e na Teoria do Direito angloamericana” [Tradução livre]. No original: “The reception of the work of Gilles Deleuze has in recent years grown considerably within the scene of Anglo-American critical legal scholarship and jurisprudence”.

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mais difuso fazem da conexão entre a obra de Deleuze e o pensamento jurídico um evento em sentido forte, à luz do qual conviria repensar as formas tradicionais de se fazer Teoria do Direito. No Brasil, a atualidade da obra de Deleuze é confirmada pela tradução de grande parte das obras originais de Deleuze para o português, pela reedição de muitas de suas obras mais populares e pela publicação de uma literatura secundária em inglês e em português.

A aproximação entre o campo jusfilosófico e uma possível filosofia do direito de Deleuze só não é mais antiga em virtude de uma suspeita neomoderna em relação a autores considerados “pós-modernos” ou “desconstrucionistas”. Essa suspeita crítica, por vezes conceitualmente laxista, reduzia obras de contemporâneos como Jean-François Lyotard, Michel Foucault ou Jacques Derrida a filosofias à l’air du temps e, estranhamente, inscrevia Deleuze nesse rol; alguém que, além de jamais ter se declarado pós-moderno, permaneceu inteiramente alheio a esse debate, tendo sido, antes, o autor de uma filosofia que permite “escovar a contrapelo a pós-modernidade”.2Essa atmosfera filosófica, característica do período que vai de 1980 a 2000, esteriliza o campo hegemônico da Teoria e da Filosofia do Direito no Brasil – apesar das contribuições contradogmáticas de renovadores da crítica jurídica, como Luis Alberto Warat, seus interlocutores e discípulos, e.g., que enfrentavam os problemas da Teoria do Direito munidos de um arsenal eclético que compreendia desde as aventuras estruturalistas do pensamento marxista até as contribuições da semiologia, da psicanálise, do pós-estruturalismo francês, articuladas a referentes da literatura, do cinema, da cultura pop etc. – e que não deixaram de se servir de Deleuze à sua maneira.

No início dos anos 1990, filósofos do direito como Alain Renaut e Lukas Sosöe afirmavam a impossibilidade de produzir uma Filosofia do Direito a partir de Deleuze.3O antinormativismo, o anti-humanismo e o antissubjetivismo de sua obra impediriam a emergência de uma teoria dos direitos e da possibilidade de pensar o nexo entre Estado e Direito segundo as condicionantes históricas do Rule of Law. Porém, essa censura está menos relacionada aos traços negativos da obra deleuziana do que

2 PÉLBART, 2003, p. 180 e p. 184.

3 RENAUT e SOSÖE, 1991, p. 44.

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à dificuldade em conceber, nos limites conceituais da tradição moderna, que uma filosofia do direito tão radical quanto a de Deleuze fosse digna deste nome, ao demolir as ideias de norma, sujeito de direito e a hipócrita atmosfera humanista que as secunda, e se erigisse sem sequer recorrer a essas categorias.

A emergência do Critical Legal Studies (CLS) entre os anos 1970 e 1980, em torno de um grupo de juristas ligados à Universidade de Harvard, permitiu a recepção da filosofia de Deleuze no campo jusfilosófico, embora os textos precursores em língua inglesa sobre a sua filosofia do direito tenham precisado aguardar os anos 2000, e o primeiro livro tenha sido publicado apenas em 2008.4A heterogeneidade do CLS convinha à natureza da filo-sofia deleuziana. Em primeiro plano porque, ao criticar as ideias centrais do pensamento jurídico moderno, o CLS as substitui por uma nova concepção de direito,5inaugurando um campo de tensões teórico-políticas receptivo a filosofias radicais, alinhadas ao pós-estruturalismo. Em segundo plano, porque esse novo campo deriva da crítica dirigida contra as teorias do direito liberais e formais a partir de um método que hibridiza realismo e historicismo pós-estrutural, com vocação política comunitarista.6O CLS recusa poderosamente as matrizes de pensamento kantiano, benthamiano e as variantes neoliberais de análise econômica em proveito da construção local de críticas reveladoras das mistificações do legalismo liberal, como a neutralidade política e a objetividade do direito, dos juízes, dos discursos jurídico-legais, das estruturas institucionais, do ensino jurídico etc. Isso permitia ver o direito como um constructo puramente social, contingente e politicamente orientado a partir das dimensões de sua textualidade, o que conduzia sem sobressaltos à crítica da teoria dos direitos como mistificações liberais que mascaram desigualdades econômicas, políticas e sociais estruturantes, sufocando a emergência de novas formas de socialidade e de vida em comum.

Essa matriz teórica desenvolve-se em três direções tematicamente distintas, e origina visões não raro contraditórias: um liberalismo reconstrutivo, uma teoria crítica feminista e de raça e uma série de teorias da linguagem,

4 Refiro-me aos trabalhos de Nathan MOORE, 2000, p. 185-200 e de Alexandre LEFEBVRE, 2008.

5 UNGER, 1983, p. 01.

6 WARD, 1998, p. 156.

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profundamente influenciadas pela teoria literária.7Ainda que essas dire-ções efetuem construções heteróclitas, estas permanecem articuladas a um fundo problemático comum, produtor de uma crítica impiedosa e radical à desconexão entre direito e política.

Em largos traços, esse é o terreno nada homogêneo em que a obra de Deleuze começa a prosperar na Filosofia e na Teoria do Direito. Apesar de contribuir para o desbloqueio do uso de Deleuze nesse campo, o CLS e suas variações mais recentes fornecem um terreno dialógico e problemático ambíguo para a compreensão da filosofia do direito de Deleuze, embora continue a ser o principal canteiro de trabalhos a seu respeito. Seguindo alguns dos traços do CLS, os filósofos contemporâneos do direito que adotam Deleuze como intercessor desenvolvem sua filosofia do direito em sentidos bastante distintos. São seus principais traços que nos propomos a inventariar criticamente (item 2) a seguir. Essa reconstrução sistemática permitirá indicar uma lacuna de interpretação que comportaria sentidos não experimentados em que a filosofia do direito de Deleuze ainda mere-ceria ser desenvolvida (item 3).

2. O real do direito

Certa vez, Deleuze afirmou que “A jurisprudência é a filosofia do direito, e procede por singularidade, por prolongamento de singularidades”.8Dois anos mais tarde, em uma entrevista a Antonio Negri, Deleuze declarava que “a jurisprudência [...] é verdadeiramente criadora de direito: ela não deveria ser confiada aos juízes. [...] Não é de um comitê de sábios [...] que precisamos, mas de grupos de usuários. É aí que se passa do direito à política”.9Essas declarações foram objeto de interpretações tão rigorosas quanto distintas no último decênio. Em geral, elas originaram concepções práticas que, assumindo pontos de vista não-isomórficos, apreendem o

7 WARD, 1998, p. 157.

8 DELEUZE, [1990] 2008, p. 191. [Nota do autor: quando foram utilizadas traduções das obras de Deleuze, escritas individualmente ou em parceria, ou de seus comentadores, indicamos o ano de publicação dos originais entre chaves a fim de facilitar a identificação da cronologia das publicações. Dessa forma, acatamos a recomendação dos pareceristas ad hoc de Direito, Estado, Sociedade (PUC-Rio), a quem encarecidamente agradecemos por todas as valiosas contribuições].

9 DELEUZE, [1990] 2008, p. 209-210.

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direito ora como um meio (milieu) do qual extrair conceitos,10ora como prática imanente da qual conviria deduzir sua própria e autônoma teoria.11A hipótese que serve de fio condutor para inventariar os múltiplos desdobramentos das recentes leituras jusfilosóficas da obra de Deleuze segue, em parte, a hipótese de leitura de David Lapoujade.12Segundo ela, Deleuze é um...

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