Racismo nao da conta: antinegritude, a dinamica ontologica e social definidora da modernidade/Racism does not suffice: anti-blackness, the defining social and ontological dynamic of modernity.

AutorVargas, Jo
CargoReport

O racismo deriva de uma díade que separa o mundo social em dois grupos: pessoas brancas de um lado e pessoas não brancas de outro. Esse esquema sugere que as formas de desigualdade a que pessoas não brancas estão sujeitas são resultado da supremacia branca, a qual valoriza a branquitude ao mesmo tempo em que desvaloriza a não branquitude. (1)

O foco na supremacia branca permite uma compreensão de desigualdades sociais cujas dinâmicas derivam da construção social da raça, articuladas às construções sociais do gênero e da sexualidade. Portanto, raça, gênero, sexualidade e classe social, entre outras variáveis, são fundamentais nas análises críticas visando o entendimento e o fim da opressão. A opressão, da perspectiva que se tornou canônica, pelo menos nos meios progressistas, é entendida como o resultado da combinação de opressões múltiplas. O manifesto de 1977 das mulheres negras, das classes trabalhadoras e majoritariamente queer do Combahee River Collective expressa, de maneira exemplar, essa perspectiva crítica da supremacia branca, enfatizando uma análise interseccional. (2) Diz o manifesto:

No momento presente, a proposição mais geral de nossa política é que nós estamos comprometidas ativamente à luta contra as opressões de raça, sexo, heterossexualidade, e classe, e temos como nosso objetivo principal o desenvolvimento de uma análise e prática integradas que se baseiam no fato de que os principais sistemas de opressão são interconectados. A síntese dessas opressões cria as condições de nossas vidas. Enquanto mulheres negras, consideramos o feminismo negro o movimento político lógico no combate às opressões múltiplas e simultâneas que todas mulheres de cor vivenciam. (tradução livre). (3) É inegável o poder que essa perspectiva analítica tem de aglutinar grupos sociais oprimidos díspares. Ao tornar as condições das vidas de mulheres negras comensuráveis às das mulheres não brancas, ou de cor (asiáticas, latinas, indígenas e outras), o manifesto abre a possibilidade da formação de blocos políticos multirraciais, que lutam contra as formas articuladas de opressão. Esses blocos políticos têm como base analítica e ética o reconhecimento de que tais opressões são o resultado da supremacia branca global. As opressões que cada grupo sofre não são necessariamente as mesmas, mas elas são comparáveis e traduzíveis umas às outras porque provêm de uma mesma fonte, qual seja, a supremacia branca cis-heteronormativa patriarcal e capitalista. E da comparação e reconhecimento das várias opressões sofridas por grupos não brancos diversamente categorizados (simultaneamente pela classe social, raça, gênero, sexualidade, entre outras variáveis) resultam denominadores comuns, os quais ressaltam experiências compartilhadas.

Perspectivas analíticas e políticas mais recentes, que reconhecem a singularidade e mesmo a incomensurabilidade da condição negra, sugerem uma abordagem alternativa. Propondo que a díade definidora do mundo social é entre pessoas negras, de um lado, e pessoas não negras, de outro (ao invés de brancas e não brancas, como sugere a abordagem da supremacia branca). Tais perspectivas emergem de análises demográficas e de economia política (MELVIN; SHAPIRO, 1995; YANCEY, 2004; OLIVEIRA, 2007), bem como de esforços teóricos que apresentam conceitos tais como o de morte social e da vida póstuma da escravidão (JAMES, 1999; HARTMAN, 1997; WILDERSON, 2010).

De acordo com essas análises e esforços teóricos, as pessoas negras vis-à-vis às não negras são (a) sistemática e singularmente excluídas (de moradia digna, emprego, saúde, segurança, vida) e (b) constituem o não ser que fundamenta as subjetividades não negras do mundo moderno. Ambas as proposições indicam uma lógica que resulta na negação tanto ontológica quanto social da pessoa negra. Tal lógica é a antinegritude. No restante desse ensaio, ofereço alguns parâmetros que definem a antinegritude.

Como ponto de partida, a antinegritude é o fundamento da Humanidade. O ser moderno se define em oposição ao não ser negro. Quando Frantz Fanon (1967) descreve o inconsciente coletivo moderno, ele coloca o medo e o ódio à pessoa negra no seu centro nevrálgico. O ódio à pessoa negra na verdade é o ódio ao não ser, ao não lugar, ao não Humano (FANON, 1967; GORDON, 1999). Assim, ao passo que, da perspectiva do racismo, a discriminação racial é algo que pode ser eliminado ou pelo menos combatido, da perspectiva da antinegritude, essa proposição fica mais complicada. Isso porque, nessa perspectiva, trata-se não apenas de eliminar um conjunto de práticas sociais e institucionais (o racismo), mas de questionar fundamentalmente a própria noção de Humanidade e sua dependência na exclusão daquelas consideradas não pessoas. A antinegritude é constitutiva da Humanidade. Ser humano é não ser negro. Tendo isso em vista, como elaborar políticas públicas, práticas sociais ou noções de ser que questionam o conceito de Humanidade?

Podemos pensar o racismo (como por exemplo o racismo antinegro, que não é o mesmo que a antinegritude, como explico abaixo) como valores, sentimentos e efeitos sociais que, juntamente com práticas cotidianas e institucionais (que por sua vez impactam valores e sentimentos, numa relação de retroalimentação constante), produzem desvantagens estruturais, ubíquas, trans-históricas e contemporâneas para pessoas negras. Na medida em que muitas dessas desvantagens estão vinculadas à distribuição de recursos sociais finitos, elas vinculam-se também a vantagens para pessoas não negras.

É necessário frisar que tais valores, sentimentos e efeitos sociais, que podem ser medidos através de vários métodos de análise...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT