Direitos humanos, racismo e seu disciplinamento no ordenamento jurídico brasileiro

AutorMariana Bettega Bräunert
CargoBacharel em Direito (Unicuritiba) Graduada em Ciências Sociais
Páginas20-25

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1. Introdução

Ao longo das últimas décadas, o sistema internacional de proteção dos Direitos Humanos passou por alguns processos importantes, entre os quais podese destacar os de universalização e especificação desses direitos. O primeiro processo – de universalização – diz respeito à ampliação/extensão dos sujeitos titulares de direitos humanos, que passam a ser todos os seres humanos, em razão de sua condição como tais. O segundo – de especificação – surge da necessidade de conferir a determinados grupos tutela jurídica diferenciada, em razão de sua condição própria de vulnerabilidade.

Com isso, grupos específicos passam a ser titulares de direitos humanos em potencial, notadamente as crianças, os idosos, os deficientes físicos, os doentes mentais, e as minorias em geral, sejam elas étnicas, raciais, religiosas ou sexuais.

Nesse contexto, o presente artigo tem por escopo analisar o disciplinamento dos direitos humanos das minorias raciais no ordenamento jurídico brasileiro, em especial da população afrodescendente. Além de como o Brasil incorpora a legislação internacional de combate ao racismo e com ela harmoniza o seu ordenamento jurídico interno, pretendese analisar até que ponto o Estado Brasileiro é eficiente em garantir às minorias raciais, na prática, a observância dos direitos a elas formalmente assegurados.

Para tanto, partese de uma visão integral dos direitos humanos: não obstante formalmente divididos em “gerações”, eles formam um todo uno e complementar, de modo que sua plena realização só pode darse a partir do gozo dos direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais indissociavelmente.

2. Indivisibilidade e interdependência dos direitos humanos: a igualdade como precondição para o exercício das liberdades fundamentais

Embora baseados em pressupostos naturalistas, os direitos humanos são sempre um produto histórico. São, como coloca Norberto Bobbio, antes de tudo direitos históricos, ou seja, “nascidos em certas circunstâncias, caracterizadas, mais especificamente, por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas”1.

Portanto, não existem direitos fundamentais por natureza. O que parece fundamental numa época histórica e numa determinada civilização não é fundamental em outras épocas e em outras culturas2.

Nesse sentido, como entende Hannah Arendt, não só os direitos humanos, mas todos os direitos, não são um dado, mas construídos, dentro de uma comunidade política; ou seja, são uma invenção humana em constante processo de reconstrução.

A emergência dos direitos humanos deuse em circunstâncias históricas bastante específicas, notadamente em um contexto marcado pela lembrança das atrocidades cometidas durante a Segunda Guerra Mundial e da necessidade de criarse, em âmbito universal, um consenso mínimo relativo a um determinado sistema de valores.

Dito isto, notese que os direitos humanos são frequentemente classificados em gerações. Nesse sentido, temse que a primeira geração consagra os direitos civis e políticos (ou as liberdades negativas fundamentais do indivíduo face ao poder estatal); a segunda geração consagra o rol dos direitos econômicos, sociais e culturais, sobretudo ligados à proteção do trabalhador; e a terceira, que inclui a solidariedade e a fraternidade entre os povos como princípios jurídicos merecedores de tutela.

No entanto, a classificação dos direitos humanos em gerações tratase apenas de um instrumental analítico utilizado para evidenciar a dimensão evolutiva de seu surgimento e desenvolvimento.

Como observa Antonio Augusto Cançado Trindade, “nunca é demais ressaltar a importância de uma visão integral dos direitos humanos”3. Para o autor, as tentativas de categorização dos direitos humanos e divisão em Page 21 “gerações” têm prestado um desserviço à causa da proteção internacional dos direitos humanos, pois “indivisíveis são todos os direitos humanos, tomados em conjunto, como indivisível é o próprio ser humano, titular desses direitos”4.

Por essa razão, há quem prefira, inclusive, como André Ramos Tavares, falar em “dimensões” ao invés de “gerações” de direitos humanos. Para o autor, a ideia de gerações é equívoca, porque dela se deduz que uma geração substitui a outra, o que não ocorre com os direitos humanos5.

Não obstante duas grandes gerações de direitos humanos, uma consagrando as liberdades individuais e outra os direitos sociais, muitos autores ressaltam, como se adiantou anteriormente, que os direitos humanos formam um sistema indivisível, constituído por um conjunto de direitos uno e indissociável. Ou seja, entendese que os direitos sociais e liberdades fundamentais são indivisíveis e interdependentes.

Além da universalidade, pois, outra característica ressaltada é a da indivisibilidade da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, ao conjugar os direitos civis e políticos aos econômicos, sociais e culturais. Conforme Flávia Piovesan,

“sem a efetividade dos direitos econômicos, sociais e culturais, os direitos civis e políticos se reduzem a meras categorias formais, enquanto que, sem a realização dos direitos civis e políticos, ou seja, sem a efetividade da liberdade entendida em seu mais amplo sentido, os direitos econômicos, sociais e culturais carecem de verdadeira significação. Não há mais como cogitar da liberdade divorciada da justiça social, como também infrutífero pensar na justiça social divorciada da liberdade. Em suma, todos os direitos humanos constituem um complexo integral, único e indivisível, em que os diferentes direitos estão necessariamente inter- relacionados e são interdependentes entre si.”6

Essa mesma posição é defendida por Fábio Konder Comparato: “A liberdade individual é ilusória, sem um mínimo de igualdade social; e a igualdade social imposta com sacrifício dos direitos civis e políticos acaba engendrando, mui rapidamente, novos privilégios econômicos e sociais”7.

Portanto, embora não caiba aqui discutir de forma aprofundada a relação entre o exercício dos direitos individuais e sociais, tampouco qual dos dois deve prevalecer, cabe ressaltar que o entendimento predominante é o de que um é precondição para o exercício do outro, não podendo o Estado absterse tanto de garantir a liberdade quanto de implementar a igualdade.

3. Da teoria à prática: a distância entre os direitos reconhecidos e efetivamente tutelados

Embora a garantia dos direitos coletivos seja precondição para o exercício da liberdade e vice-versa, não podendo o Estado absterse tanto de garantir a liberdade quanto de implementar a igualdade, a dificuldade em efetivar os direitos humanos é um problema que afeta, sobretudo, os direitos sociais, econômicos e culturais, ditos “de segunda geração”.

Na atualidade, entende Norberto Bobbio que o problema fundamental em relação aos direitos humanos não é tanto o de justificálos, mas sim o de protegê-los. Tratase, portanto, de um problema não filosófico, mas político8.

Nesse sentido, o autor afirma que “com efeito, o problema que temos diante de nós não é filosófico, mas jurídico e, num sentido mais amplo, político”9.

Bobbio justifica seu entendimento: “Não se trata de saber quais e quantos são esses direitos, qual é a natureza e seu fundamento, se são direitos naturais ou históricos, absolutos ou relativos, mas sim qual é o modo mais seguro para garantilos, para impedir que, apesar das solenes declarações, eles sejam continuamente violados.”10>

Portanto, o grande problema dos direitos humanos hoje não é justificálos com argumentos convincentes, até porque já é quase consensual que sua tutela é desejável, mas sim garantirlhes uma proteção efetiva.

Wagner D’Angelis também aponta a tibieza da Declaração no que concerne a sua eficácia, notadamente quanto aos direitos coletivos. Nesse sentido, afirma o autor que “os problemas relativos à institucionalização dos direitos humanos não se encontram no plano de sua expressão formal; as dificuldades localizamse precisamente no plano de sua realização concreta e no plano de sua exigibilidade”11.

Com relação ao problema da eficácia dos direitos humanos, portanto, é importante diferenciar a garantia das liberdades da efetivação dos direitos sociais, econômicos e culturais, vez que é quase unânime o entendimento de que o problema atinge, sobretudo, estes últimos. Nas palavras de Bobbio, “os direitos sociais são aqueles que a imensa maioria da humanidade não tem de fato, embora sejam solene e repetidamente proclamados”12.

Fábio Konder Comparato também aponta para a maior dificuldade de efetivação dos direitos sociais em relação aos de “primeira geração”, dificuldade essa que para o autor está ligada à própria natureza desses direitos, vez que sua efetivação exige uma interferência constante e programada do poder público na esfera privada objetivando a eliminação das desigualdades sociais13.

4. A “multiplicação” por “especificação” dos direitos humanos: minorias étnicas e grupos específicos como sujeitos de direitos

Importante perceber que, ao longo dos anos, o sistema internacional de proteção dos direitos humanos passou por alguns processos importantes.

Para Bobbio, a primeira etapa da progressiva afirmação dos direitos do homem ao longo da história é a...

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