Raca como elemento central da politica de morte no Brasil: visitando os ensinamentos de Roberto Esposito e Achille Mbembe/Race as a central element of Brazil's death policy: visiting the teachings of Roberto Esposito and Achille Mbembe.

Autorde Araujo, Danielle Ferreira Medeiro da Silva

Introducao

O objetivo do artigo e apresentar discussoes sobre a politica de morte da juventude negra no Brasil, tendo como principal chave de leitura a raca, e como dados, aqueles apresentados, por exemplo, no Mapa da Violencia 2018 e Atlas da Violencia 2019. A partir das teses de dois filosofos, o italiano Roberto Esposito e o camarones Achille Mbembe, dois conceitos a biopolitica e a necropolitica, terao destaque para abordar a raca como fator determinante para o estabelecimento e manutencao da politica de morte no Brasil, fortalecida pelo poder das normas legais do pais, que, apesar de formalmente apregoar a igualdade e garantir o direito a vida, no cotidiano alguns cidadaos sao considerados pelo Estado aptos a viver e outros marcados para a morte a partir de um determinante racial.

Ao escrever sobre a "Filosofia do Bios", o autor Roberto Esposito, estuda a questao relacionada ao fato do Estado atuar no corpo coletivo e na gestao da vida social. O autor traca os caminhos de discussao do tema biopolitica durante o nazismo, periodo particular em que se faria o uso de um dispositivo tanatologico que contraditoriamente busca o cuidado da vida atraves da proliferacao da morte. E estuda possibilidades de estabelecimento de uma biopolitica positiva, apos o fim do nazismo. De acordo com o texto, ainda hoje, todas as questoes de interesse publico na sociedade seriam interpretadas a partir de uma conexao profunda e imediata com a esfera do bios, o que revela o achatamento tendencial da politica sobre os corpos (1). Um dos pontos em debate seria a reflexao de como transformar a "norma de vida", um dispositivo tanatopolitico criado pelo nazismo, fundada em um carater de pureza racial, em uma politica da vida. Essa estrutura juridica nazista estaria fundamentada na afirmacao de que "somente uma vida ja decidida segundo uma determinada ordem juridica pode constituir o criterio natural de aplicacao do direito" (ESPOSITO, 2017, p.232).

Ja a proposta de uma politica da vida estaria fundada no principio de equivalencia ilimitada para todas as formas de vida singulares (a norma seria emanada na propria capacidade de existencia do sujeito). No ensaio sobre a necropolitica Achille Mbembe (2016) apresenta a politica de morte sustentada na dimensao da racializacao, na subalternidade reservada aos negros, no poder de ditar quem pode viver e quem deve morrer. Para Mbembe a nocao de biopoder e insuficiente para explicar as formas contemporaneas de subjugacao, assim o autor articula colonialidade, racismo e violencia de Estado para argumentar sobre as formas contemporaneas que subjugam a vida ao poder da morte (MBEMBE, 2003).

Diante de tais questoes, a primeira reflexao abordada no texto sera a politica de morte imposta a juventude negra, apoiada nos dados do Mapa da Violencia e Atlas da Violencia, entre outras fontes estatisticas, que revelam que em especial os jovens negros, os moradores dos bairros perifericos e com baixa escolaridade sao os principais corpos marcados para a morte. Isso seria resultado da objetificacao do corpo negro nos ultimos seculos, a partir do trabalho forcado, do seu descarte como mercadoria, da perseguicao do corpo negro na legislacao pos-abolicao como, por exemplo, a prisao dos vadios, que em ultima analise eram negros, alem da violencia continuada ate os dias de hoje como o encarceramento e genocidio desta populacao. (ARAUJO e SANTOS, 2019).

O segundo ponto de reflexao dialoga com o primeiro. Os corpos negros alem de serem tratados como corpos descartaveis continuam vistos como corpos perigosos, portanto, a circulacao dos negros e negras nas ruas ainda causa certo temor. A ocupacao das ruas desde o periodo colonial era disciplinada pelos brancos, que a partir das Posturas Municipais proibia as principais manifestacoes culturais negras, como a capoeira, o lundu e o candomble. O ajuntamento de negros poderia significar a organizacao de revoltas como foi o Levante dos Males, ou ainda a Revolucao do Haiti. (ARAUJO e SANTOS, 2019).

O medo da onda negra, da ocupacao dos espacos por corpos negros, ainda causa medo. Assim, para a elite e o Estado, seria necessario continuar disciplinando como essa populacao ocupa os espacos da cidade, fortalecendo os estereotipos preconceituosos e criminalizando os seus modos de vida. A terceira linha de discussao e reflexao do texto seria pensar em caminhos de construcao de uma biopolitica afirmativa, que seja enfrentada em seu interior para fazer emergir uma politica de vida (RODRIGUES, 2017).

A questao a ser refletida e: como transformar a logica tanatologica em uma politica da vida no contexto brasileiro? Para trilhar o caminho para respostas serao relacionados os pensamentos dos autores Roberto Esposito e o Achille Mbembe que estudam os efeitos da raiz racial como determinante das acoes politicas e juridicas do Estado (ARAUJO e SANTOS, 2019).

Para desenvolvimento do artigo, sera utilizado o metodo de revisao de literatura trazendo a baila nao so os textos dos autores citados, mas tambem de outros autores que abordaram a tematica, ainda que nao de maneira direta. Combinado com a revisao de literatura, serao apresentados dados do Mapa da Violencia e Atlas da Violencia, dados de orgaos oficias nacionais e internacionais, e demais dados de organizacoes naogovernamentais publicados que exemplificam para analise do tema apresentado.

O texto se propoe a uma caminhada historica que revela como a violencia colonial e exclusao da populacao negra no Brasil limitou e limita o acesso desta ao acumulo de capital social, economico e cultural, e a deixa vulneravel a ser o alvo principal das violencias impelidas pelo Estado em busca da "pacificacao social" com a aplicacao do seu aparato de politicas de seguranca publica. Tais temas serao tratados na primeira sessao buscando trazer as discussoes que colocam o colonialismo e o racismo como pontos centrais para construcao de politicas de seguranca publica que mantiveram, sob o poder simbolico das normas legais, o dispositivo tanatologico de fazer viver e deixar morrer determinado grupo social, a saber, a populacao negra.

Na segunda sessao sera abordado o medo branco da onda negra, ou seja, do medo que a sociedade branca tem da organizacao dos negros, pelo menos desde a Revolucao do Haiti, e como esse medo aliado a biopolitica construiu um lugar social para populacao negra, um lugar de nao-direito e de morte. Busca-se refletir como as normas legais serviram e ainda servem como poder simbolico importante para a marginalizacao e criminalizacao dos modos de vida da populacao negra, que resiste a dominacao e sujeicao de uma visao legitima de mundo imposta pelo poder que se pretende dominante.

Ja na terceira sessao a abordagem sera sobre a necropolitica e sua relacao com o colonialismo/colonialidade para entender os fundamentos da politica de seguranca publica, que nao garante o direito a vida da populacao negra, especificamente da juventude. E por fim, na ultima sessao, serao apresentados alguns desafios para superar a politica de morte do Estado brasileiro, enfrentando o racismo estrutural para que se possibilite a construcao de uma politica de vida para a populacao negra brasileira.

  1. Violencia colonial e exclusao no Brasil: um contrato social que a populacao negra nunca assinou

    Dados de pesquisas recentes demonstram numeros da mortalidade no Brasil. Em 2017, tivemos o maior nivel de letalidade no pais com aproximadamente 31,6 mortos para cada 100 mil habitantes e 69,9 homicidios para cada 100 mil jovens. Vale ressaltar que, das pessoas do sexo masculino, entre 15 e 19 anos, falecidos no pais, 59,1% tem como causa do obito o homicidio. Nos ultimos anos tambem ocorreu o aumento da violencia letal contra as minorias, ou seja, populacoes especificas, como os negros, populacao LGBTI, e mulheres (feminicidio). No Nordeste, local de residencia das autoras, ocorreu um acentuado aumento destas mortes. Para finalizar, por enquanto, os dados recentes, em 2017, 75,5% das vitimas de homicidios foram individuos negros (BRASIL, 2019).

    Quais sao as possiveis causas para numeros tao altos de obitos de jovens negros? Varios sao os caminhos para explicar o fato, mas a centralidade e a mesma, o racismo (2) e a grande arma da sociedade contra os jovens negros. De acordo com o Atlas da Violencia de 2019, (3) o que se verifica no pais e a continuidade de um processo de aprofundamento da desigualdade racial que se revela tambem (4) nos indicadores da violencia letal. E o racismo que diferencia um jovem negro de um jovem branco vestido com a roupa da escola e "permite" que o negro seja alvejado com tiros, como ocorreu com Marcos Vinicius que faleceu durante operacao policial (policiais civis e militares e soldados do Exercito) na Mare (5), e o racismo que permite que um homem negro seja atingido por mais de 80 tiros (6) em operacao policial e e o racismo que paralisa a sociedade, que fecha os olhos e reproduz o discurso da elite de que os jovens negros sao perigosos, ainda que estejam brincando de esconde--esconde e outras brincadeiras inocentes, ou simplesmente conversando (7,8). O fato de o jovem ser negro concede "autorizacao para matar" ao policial, que, ao confundir guarda-chuva com arma, (9) tira mais uma vida na periferia e nada e feito.

    Portanto, e necessario entender mais profundamente como o racismo/raca atua nas relacoes sociais como um dispositivo tanatologico (10) para se compreender a possibilidade de continuidade ou o processo de aceitacao institucional e social dos numeros de obitos de jovens negros no pais. Segundo Silvio Luiz de Almeida, a raca e um conceito relacional e historico, e apesar da biologia e da antropologia terem contribuido para demonstrar que as diferencas nao justificam tratamento discriminatorio entre seres humanos, "o fato e que a nocao de raca ainda e um fator politico importante utilizado para naturalizar desigualdades, justificar a segregacao e o genocidio de grupos sociologicamente considerados minoritarios"...

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