Questões preliminares relacionadas à interpretação das normas

AutorRegina Célia Buck
Ocupação do AutorAdvogada. Consultora Jurídica. Professora de Direito. Especialista em Direito Civil e Direito Processual Civil e Mestra em Direito do Trabalho pela UNIMEP
Páginas17-41

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A lei é uma regra social imposta a todos os cidadãos. É à vontade dos particulares que o legislador fala e não à sua inteligência e, quando se dirige a essa, é para alcançar a vontade.11 A interpretação é uma atividade criadora, na qual existe uma ideia de direito destinada a expor o significado de uma expressão.

É um processo no qual entra a vontade humana. O intérprete procura determinar o conteúdo exato das palavras e imputar um significado à lei.

Interpretar a lei é atribuir-lhe um significado, medindo-lhe a exata extensão e a possibilidade de sua aplicação a um caso concreto. Consiste, portanto, em determinarlhe o sentido, chamado também de pensamento, espírito ou vontade da lei.12 Nesse sentido, a interpretação é uma escolha entre múltiplas opções e, por mais bem formuladas que sejam as prescrições legais, ela sempre é necessária.

A atividade interpretativa busca, sobretudo, reconstruir o conteúdo normativo, explicitando a norma em concreto, em face de determinado caso.

Interpretar, no dicionário, significa ajuizar a intenção, o sentido de explicar ou aclarar; o sentido de traduzir, decifrar, esclarecer.13 É descobrir o sentido e o alcance da norma, procurando o significado dos conceitos jurídicos. O magistrado a todo instante, ao aplicar a legislação ao caso sub judice, a interpreta, pesquisando o seu significado. É explicar, esclarecer; dar o verdadeiro significado do vocábulo; extrair da norma tudo o que nela contém, revelando seu sentido apropriado para a vida real e conducente a uma decisão.14 É um momento de intersubjetividade: o ato interpretativo do juiz, procurando captar e trazer a ele o ato de outrem, no sentido de se apoderar de um significado objetivamente válido.15

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Para o intérprete, aquilo que se compreende da lei consiste em algo objetivo; mas, o aplicador da norma não a reproduz, mas contribui, de certo modo, para constituí-la em seus valores expressivos, visto que lhe compete a tarefa de enquadrar o fato humano dentro de uma norma jurídica.16 O intérprete, ao realizar a sua função, deve sempre iniciá-la pelos princípios constitucionais, partindo do princípio maior que rege a matéria em questão, voltando-se em seguida para o mais genérico, depois o mais específico, até encontrar-se a regra concreta que vai orientar a espécie.

Ao intérprete constitucional caberá visualizá-los em cada caso e seguir-lhes as prescrições. A generalidade, a abstração e a capacidade de expansão dos princípios permitem ao intérprete, muitas vezes, superar o legalismo estrito e buscar no próprio sistema a solução mais justa, superadora do summum ius, summa iniuria. Mas são esses mesmos princípios que funcionam como limites interpretativos máximos, neutralizando o subjetivismo voluntarista dos sentimentos pessoais e das conveniências políticas, reduzindo a discricionariedade do aplicador da norma e impondo-lhe o dever de justificar seu convencimento.17

Além disso, ao se aplicar a legislação, deve-se procurar compreendê-la em atenção aos seus fins sociais e aos valores que pretende garantir (Lei de Introdução ao Código Civil, art. 5º).

É de grande utilidade prática o art. 5º, da Lei de Introdução ao Código Civil, pois a técnica da decisão requer uma solução justa ao caso singular sub judice, sem conflitar com o direito positivo e com o meio social.18 Não existe lei que não tenha uma finalidade social imediata. Por isso, o conhecimento do fim19 é uma das preocupações precípuas da ciência jurídica e do órgão aplicador do direito.20 Os fins sociais são do direito, pois a ordem jurídica, como um todo, é um conjunto de normas para tornar possível a sociabilidade humana; logo, dever-se-á encontrar nestas normas o seu fim, que não poderá ser antissocial.21 O juiz, ao aplicar a lei, entregar-se-á a uma delicada operação de harmonização desses elementos, em face das circunstâncias reais do caso concreto. Quando

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o texto legal se apresentar obscuro ou duvidoso, em função das exigências das modernas condições sociais, o magistrado, ao balancear os elementos do bem comum, exercerá uma função criadora ao adaptar a lei às condições evoluídas da realidade social, para decidir o caso sub judice.22 As leis positivas são formuladas em termos gerais; fixam regras, consolidam princípios, estabelecem normas, em linguagem clara e precisa, porém ampla, sem descer a minúcias. É tarefa primordial do executor a pesquisa da relação entre o texto abstrato e o caso concreto, entre a norma jurídica e o fato social, isto é, aplicar o direito. Para consegui-lo, se faz necessário um trabalho preliminar: descobrir e fixar o sentido verdadeiro da regra positiva e, logo depois, o respectivo alcance, a sua extensão. Em resumo, o executor extrai da norma tudo o que na mesma se contém: é o que se chama interpretar, isto é, determinar o sentido e o alcance das expressões do Direito.23 É importante salientar que a hermenêutica visa revelar, descobrir, perceber qual o significado mais profundo daquilo que está na realidade manifesta. Pela interpretação, descobre-se o significado oculto, não manifesto, não só de um texto (estrito senso), mas também da linguagem. Em verdade, pode-se dizer que, por meio do entendimento, chegamos a conhecer realmente o próprio homem, a realidade em que vive, a sua história e a sua própria existência.

O intérprete é o renovador inteligente e cauto, o sociólogo do direito. O seu trabalho rejuvenesce e fecunda a fórmula prematuramente decrépita e atua como elemento integrador e complementar da própria lei escrita. Esta é a estática, e a função interpretativa, a dinâmica do Direito.24

O direito deve acompanhar a evolução cultural. Necessariamente, o ordenamento jurídico deve interagir-se com os acontecimentos sociais, visando buscar a realização de necessidades humanas reais. Há que se evitar o vezo persistente de apresentar doutrinas e teorias jurídicas desligadas de suas condicionantes sociais e políticas, para que não apareçam como puras construções do espírito entre as quais é difícil escolher. Não há como cultivar o direito, isolando-o da vida, que, em nossa época, se caracteriza pela rápida mobilidade, determinada pelo progresso científico e tecnológico, pelo crescimento econômico e industrial, pelo influxo de novas concepções sociais e políticas e por modificações culturais.25

A interpretação da norma jurídica em desconformidade com o bem comum, com a evolução cultural, ou ainda, em desacato à própria estrutura de

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um ordenamento jurídico geram injustiças, desigualdade social ou, no mínimo, situação de desrespeito em relação ao Judiciário.

Ao julgar o caso concreto, o juiz adapta a lei às necessidades atuais, o que não implica, necessariamente, em uma tradução arbitrária da lei.

O juiz deve estar em sintonia não somente com o direito, mas também ter um profundo conhecimento da natureza humana.

Compreender e interpretar significam conhecer e reconhecer um sentido vigente.

O juiz procura corresponder à ideia jurídica da lei, intermediando-a com o presente. É evidente, ali, uma mediação jurídica.

O que tenta reconhecer é o significado jurídico da lei, não o significado histórico de sua promulgação ou certos casos quaisquer de sua aplicação.

Assim, o juiz não se comporta, como historiador, mas se ocupa de sua própria história, que é seu próprio presente. Por consequência, pode, a cada momento, assumir a posição do historiador, face às questões que implicitamente já o ocuparam como juiz.26

O magistrado tem a tarefa prática de decretar a sentença e, nisso, podem entrar em jogo também muitas e diversas considerações político-jurídicas, as quais o historiador jurídico, que tem diante de si a mesma lei, não faz.

Com efeito, para que haja a possibilidade de uma verdadeira hermenêutica jurídica, faz-se necessário que a lei estabeleça a igualdade entre todos os membros da comunidade jurídica.

Caso contrário, não será possível nenhuma interpretação; a vontade do senhor absoluto estará acima da lei onde, por ser superior, o soberano poderá explicar suas próprias palavras, mesmo em contradição com as regras da interpretação.

Assim como no absolutismo27 , o rei pode impor o que lhe parece justo, sem interpretar a lei, ou até mesmo a contrariando.28 Sendo a existência do ordenamento jurídico uma constante em toda sociedade, deverá, sempre e necessariamente, sujeitar-se a regras de interpretação jurídica visando conferir a aplicabilidade da norma legal às relações sociais que lhe deram origem, estender o sentido da norma às relações novas, inéditas ao

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tempo de sua criação, e temperar o alcance do preceito normativo, para fazê-lo corresponder às necessidades reais e atuais de caráter social.29 Interpretar é explicar, esclarecer; dar o significado de vocábulo, atitude ou comportamento; reproduzir, por outras palavras, um pensamento exteriorizado; mostrar o sentido verdadeiro de uma expressão, extrair, da frase, sentença ou norma, tudo o que na mesma se contém.30 Assim, interpretar uma expressão de direito não é simplesmente tornar claro o respectivo dizer, abstratamente falando; é, sobretudo, revelar o sentido apropriado para a vida real, e que nos conduz e a uma decisão reta.

Interpretar a lei é revelar o pensamento que anima as palavras.31

Embora a intenção da lei seja um ponto importante para o intérprete, o essencial é escolher, entre os pensamentos possíveis da lei, o sentido mais racional, mais salutar e de efeito mais benéfico. Por isso que a lei admite mais de uma interpretação no decorrer do curso.32 A experiência da realidade história resultou na formulação do axioma: summum ius, summa iniuria, ou seja, o sumo direito é a suma injustiça. Esclareceu também que as experiências do passado e do nosso tempo demonstraram que a justiça, por si só, não basta e que até pode levar à negação e ao aniquilamento de si própria, caso não se permitir àquela força mais profunda, que é o amor plasmar a vida humana nas suas várias dimensões.33

A tarefa da interpretação consiste em...

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