Sobre a questão da violência - entrevista especial com wagner cabral

AutorSalviana de Maria Pastor Santos Sousa
CargoAssistente Social, Doutora em Políticas Públicas pela UFMA
Páginas945-960
Entrevista realizada em 6 de novembro de 2017
DOI: http://dx.doi.org/10.18764/2178-2865.v22n2 p945-960
SOBRE A QUESTÃO DA VIOLÊNCIA
ENTREVISTA ESPECIAL com Wagner Cabral1
Entrevistadora: Salviana de Maria Pastor Santos Sousa2
Salviana de Maria Pastor Santos Sousa - Para além dos dados
estatísticos disponíveis, você identifi ca traços que poderiam associar
a sociedade brasileira com uma certa cultura da violência?
Wagner Cabral - Em virtude do processo de (de)formação
da sociedade nacional, caracterizado pelo genocídio indígena, pela
escravização do negro africano, pelo latifúndio exportador e pelo
patriarcalismo, o Brasil sempre foi marcado historicamente pelo pre-
domínio de uma cultura da violência. Mesmo que tal processo tenha
sido mascarado pela invenção de mitos fundadores que enfatizavam
ideias como a (suposta) harmonia entre colonizador e colonizado, a
(falsa) democracia racial, uma (enganosa) história de um povo bom,
pacífi co e ordeiro, em comunhão com uma terra abençoada pela ine-
xistência de guerras, do brasileiro como um homem cordial (no sen-
tido restrito de povo hospitaleiro, alegre e gentil, mas esquecendo o
componente de forte passionalidade dessa ideia-imagem, ressaltado
por Sérgio Buarque de Holanda).
Esse imaginário social não deve nos enganar: fomos e somos
um país extremamente violento, de uma brutalidade jardim, na agu-
da percepção dos poetas-compositores Torquato Neto e Gilberto Gil
em sua alegoria tropicalista da Geleia geral brasileira.
1 Mestre em História pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Professor
Assistente da Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Coordena o monitoramento
sobre violência, segurança pública e direitos humanos da SMDH.
2 Assistente Social, Doutora em Políticas Públicas pela UFMA, Professora Titular do
Departamento de Serviço Social e do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas,
Membro do Grupo de Avaliação e Estudos da Pobreza e das Políticas Direcionadas à
Pobreza (GAEPP)
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Salviana de Maria Pastor Santos Sousa
Por outro lado, havia a expectativa de que o processo de re-
democratização do país – com o fi m da ditadura civil-militar (1964-
1985), eleições gerais livres, aumento da participação popular, bem
como garantia e ampliação de direitos sociais – pudesse conduzir
não somente à consolidação democrática, mas também à redução da
violência na sociedade brasileira. Afi nal, a esperança era que a rede-
mocratização poderia funcionar como um processo civilizador (no
sentido de Norbert Elias), que gestaria mecanismos institucionais de
resolução de confl itos (com o reforço e efi cácia da Justiça, do Mi-
nistério Público e da Defensoria, por exemplo), com a conseguinte
substituição da violência direta e redução dos padrões dominantes de
violência interpessoal e institucional (estatal).
Contudo, como bem alertou o professor Sérgio Adorno (NEV-
-USP), “[...] a democracia falhou em reduzir a violência na socieda-
de brasileira”. À luz do atual Estado de Exceção, capitaneado pelo
governo de Michel Temer, poderíamos arriscar uma conclusão ainda
mais radical e desafi adora, a contrapelo das interpretações vigentes:
dentre muitas promessas abortadas, não houve redução da violência
porque houve menos um processo de redemocratização e mais uma
ditadura que se
transformou em democracia, com a permanência e prolon-
gamento de suas estruturas básicas (a verdade crua e recalcada,
apontada sem meias palavras em artigo recente do professor Flávio
Reis, UFMA). Talvez tenhamos fi cado bastante admirados e com-
prometidos com os avanços conquistados a partir da Constituição de
1988 e por governos posteriores para perceber e confrontar, com a
profundidade necessária, os muitos entraves, contradições e limites
do processo.
Assim, a cultura da violência permaneceu dominante, muito
embora confrontada parcial e cotidianamente pelos novos marcos
constitucionais, pelos tratados internacionais de direitos humanos
assinados pelo Brasil, pela experiência de governos progressistas e
pela pluralidade de movimentos sociais de caráter emancipatório na
cidade (direitos humanos, mulheres, negros, Lésbicas, Gays, Bisse-
xuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros - LGBT, Movimento
dos Trabalhadores Sem Teto - MTST e outros) e no campo (Movi-
mento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra - MST, Comissão Pas-
toral da Terra - CPT, Conselho Indigenista Missionário - CIMI e
outros). Vejamos alguns exemplos concretos:

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