Questão urbana, moradia e gestão das cidades: revisitando o projeto da reforma urbana de interesse popular

AutorFrederico Lago Burnett
Páginas113-117

Entrevista com Hermína Maricato

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Desde os anos 701 do século passado e em resposta à atuação dos movimentos populares urbanos, uma determinada produção teórica da Academia vem contribuindo para desvendar as bases da desigualdade urbana no Brasil e consolidar uma força política em defesa da construção de cidades mais justas. Unificadas a partir do processo de redemocratização do país e da Assembléia Constituinte em torno do Movimento Nacional pela Reforma Urbana, lideranças populares, intelectuais e profissionais da área do urbanismo passaram a defender a necessidade de políticas públicas para as cidades brasileiras capazes de permitir, aos mais pobres, o acesso à terra urbanizada e à moradia digna por meio da criação de espaços democráticos de gestão urbana e controle da especulação imobiliária e da apropriação privada dos investimentos públicos na cidade.

Após uma longa trajetória que se inicia com a Constituição Federal de 1988 – e seu capítulo inédito sobre política urbana – estende-se com aprovação do Estatuto da Cidade, em 2001 – com a regulamentação dos instrumentos para um planejamento democrático e distributivo – institucionaliza-se com a criação do Ministério das Cidades, em 2003, e culmina com a destinação de fundos federais para produção habitacional de baixa renda, assistimos atualmente a inúmeras iniciativas, dispersas em milhares de municípios de todo o Brasil, que contemplam as carências de urbanização e moradia dos bairros de periferia e parecem apontar para uma nova dinâmica urbana capaz de equilibrar as graves e históricas desigualdades sociais das cidades brasileiras.

Entretanto, esse quadro favorável aos interesses da população urbana de baixa renda convive com indicadores contraditórios: o crescimento acelerado das favelas e periferias, a continuidade de ações de despejo e remoção, a fragilidade e ineficácia dos conselhos paritários de gestão urbana, a inaplicabilidade de instrumentos jurídicos e urbanísticos de combate à especulação imobiliária, a não efetivação dos novos planos diretores e a permanência de tradicionais práticas clientelistas da administração pública local.

Por outro lado, os recursos financeiros e as ações públicas parecem favorecer não apenas as camadas de baixa renda, pois a abertura do capital das grandes incorporadoras nacionais, a proteção legal com que passaram a contar os investimentos contra a inadimplência e a aplicação compulsória de recursos das instituições financeiras no mercado imobiliário contribuíram para consolidar um gigantesco “boom imobiliário” nas principais cidades do país, que voltam a colocar a iniciativa privada no comando de um novo processo de “desenvolvimento urbano”.

Observa-se, assim, uma tendência na qual, apesar de um relativo atendimento de suas demandas nas áreas periféricas de moradia e sua inclusão em novos espaços de participação popular, a população de baixa renda assiste à consolidação da própria exclusão territorial, pois, mantidos à margem dos espaços valorizados, continuam sem acesso às regiões mais dinâmicas e integradas da cidade ao mesmo tempo em que, sob pressão política dos interesses do capital imobiliário, avolumam-se as demandas por investimentos públicos nas chamadas zonas nobres, aumentando as diferenças entre a cidade legal e a cidade ilegal. Configura-se, assim, uma tendência na qual, ao invés de combate à segregação sócio-territorial, a sociedade passa a reconhecer e legitimar as condições da própria exclusão fortalecendo, por meio dos atendimentos localizados, a consolidação do lugar dos ricos e dos pobres na cidade brasileira.

Para tratar deste conflitante quadro atual, que demonstra a persistência de históricos impasses da questão urbana brasileira, a Revista de Políticas Públicas conversa com Ermínia Maricato, Professora Titular da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo – FAUUSP e do Laboratório de Habitação e Assentamentos Humanos, LABHAB. Autora de inúmeros livros e artigos sobre a realidade urbana brasileira, referência internacional de militância urbana, intelectual orgânica dos movimentos populares de luta por terra e habitação, com sólida experiência na gestão pública – foi Secretária de Habitação e Desenvolvimento Urbano no governoPage 114 municipal de Luiza Erundina em São Paulo (1989-1992), membro da equipe de transição do primeiro governo Lula e Secretária Executiva do Ministério das Cidades durante a gestão de Olívio Dutra (2003-2005) - a professora Ermínia Maricato tem sabido manter uma atitude crítica e, ao mesmo tempo, propositiva em relação às políticas públicas de caráter urbano e à atuação da frente popular que reúne movimentos populares e intelectuais progressistas.

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