Quem desjudicializa se descomplica

AutorLuciano Cardoso Silveira
CargoNotário RG/RS
Páginas112-120

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A mediação extrajudicial notarial é alter-nativa jurídica para a efetiva solução de conflitos humanos diante da segurança e da confiança depositada nesta atividade por toda a sociedade. Com o consenso de vontades emanado das partes que se utilizam deste serviço dotado de fé pública, estimulamos a desburocratização e a desjudicialização. Facilita-se aí a resolução de inúmeras questões de direito que já podem ser plenamente resolvidas no âmbito extrajurisdicional. Dessa forma, com a praticidade legal proporcionada agora pela entrada em vigor da Lei 13.140/15, ter-se-á plena condição de obter um direito verdadeiramente voltado à conciliação, pois pelo contentamento consensual individual haverá mais efetividade na solução de lides e menos custos (materiais e espirituais) para as pessoas – e também para o próprio Judiciário.

De todo efeito, o avanço jurídico dessa lei, que em bom tempo adveio para o mundo do direito, representa um grande marco para toda a coletividade e para o Estado, em razão de sua substancial dimensão social contemporânea – que busca a resolução amigável dos conflitos interpessoais (o que pode ser realizado no plano do direito material face ao consensual meio jurídico notarial). Como se sabe, o consenso é e sempre foi a melhor solução jurídica. Logo, a asserção da prática desta instrumentalização mediatória pelas inúmeras serventias notariais que existem por todo o país significa direitos subjetivos efetivamente transacionados (“cerca de 10 milhões de brasileiros por dia vão aos aproximados 20 mil cartórios existentes no Brasil”). Daí que, mediante o ofício do notarius contemporaneous, se irá para o plano voluntário da composição amigável já no âmbito administrativo preventivo, transmutando-se, enfim, esta crescente litigiosidade em favor da efetividade do consenso (justiça preventiva, alternativa e efetiva).

Assim, neste singular momento histórico do nosso direito moderno, ao que tudo indica, vale realmente a pena expandirmos este campo de atuação da pena notarial para resolver demandas de forma consensual (o que é mais econômico e satisfatório para todos os envolvidos), promovendo o devido diálogo entre as partes e estimulando a negociação para a continui-dade – pacífica – das relações jurídicas (resolução de conflitos ante os princípios da voluntariedade, imparcialidade e economicidade). Esta é, pois, a respectiva

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proposta de solução de lides pela materialização prática da mediação notarial extrajurisdicional preventiva de litígios.

1. Contexto histórico da função notarial

Atualmente, o direito notarial engloba todo o cenário de conjunção das transmutações e avanços do nosso ordenamento jurídico contemporâneo. E, diante das múltiplas razões sociais e jurídicas que hoje buscam desjudicializar – preponderantemente na mediação extrajudicial – as relações humanas, constata-se que o papel da atividade notarial como ciência jurídica (que certifica a segurança jurídica) tem sido de grande valia.

Acerca da verdadeira origem da função notarial desde os tempos mais antigos, registra-se o seguinte: “Surgida a partir da necessidade de mediação desde os relacionamentos sociais mais primitivos, anota-se que a atividade notarial é uma das mais remotas atividades jurídicas certificatórias já desempenhadas pelo ser humano” (MARTINS, 1979, p. 79; destaque nosso). Tanto quanto se tem conhecimento, a partir das anotações e registros históricos, nos povos da antiguidade a atividade certificatória de atos jurídicos surgiu da necessidade de que fossem redigidos, fixados e mediados os atos negociais (inclusive de rituais) inter-humanos, havendo registros escriturais desde o tempo em que se anotava em tábuas, tendo-se passado depois dos papiros ao papel, até chegarmos, agora, à era dos bits.

Nesta alçada, como bem nos certifica Leonardo Brandelli: “O embrião da atividade notarial, ou seja, o embrião do tabelião nasceu do clamor social, para que houvesse um agente confiável” (BRANDELLI, 2009, p. 4 – grifo nosso).

Em função da necessidade jurídico-social de uma atividade que emanasse confiança certificatória fidedigna, há indícios de procedimentos voltados a certificações antes mesmo do Código de Hamurábi (1760 a.C.), existindo na Mesopotâmia contratos realizados por escribas em tabuletas de argila, que apresentavam o selo certificatório do notário (kunuku). Mas a atividade notarial em si tem sua origem mais concreta no antigo Egito com o escriba, a quem incumbia anotar e certificar muitas das atividades principais do Estado.

O meio notarial também era muito utilizado entre os cretenses e hebreus, que anotavam seus históricos atos jurídicos. Na Grécia, havia oficiais públicos conhecidos como mnemons, que se assemelhavam aos notários. Já em Roma, o notarius era o responsável pela realização de registros de procedimentos judiciais, sendo que, com a expansão do império, o papel do notário se ampliou por todas as inúmeras regiões conquistadas pelos romanos. Na própria Bíblia, o termo escriba refere-se aos doutores e mestres (cf. Mateus, 22:35; Lucas, 5:17). Em Jeremias, registra-se a formalidade da compra de um imóvel nos tempos de Nabucodonosor. Nesta passagem, Javé ordena a Jeremias: “toma estes documentos, este contrato de compra, o exemplar selado e coloca-os em um lugar seguro, para que se conservem por muito tempo” (Jer., 32:14).

Como os romanos, os bizantinos tornaram-se igualmente grandes juristas. Teodósio II editou em 438 d.C. um código das Constituições Imperiais Cristãs. Após, o imperador Leão determinou que os notários fossem instruídos nas artes da escrita e no conhecimento das leis. Theodorico, por seu turno, presta grande importância ao ofício de notário como o de juiz (formula notarium e formula referendariorum, in Edicta regum ostrogothorum: os juízes decidem as lides, os notários evitam as lides). Já no século 6, Justiniano, grande imperador, que unificou o império cristão do oriente, editou um monumental código (o Digesto continha o resumo de toda a jurisprudência romana), em que, verificando a importância dos tabeliones, instituiu o ofício notarial como profissão regulamentada.

Mais tarde, na Itália do século 13, a arte notarial se tornou pedra angular do ofício de notas do tipo latino (precursor do notário moderno). Logo, com a atividade comercial que se desenvolvia, fazendo emergir a nova classe da burguesia, adveio a necessidade de se organizar a vida jurídica e econômica das cidades – em Bolonha, por exemplo, em 1250 encontravam-se laborando inúmeros notários na cidade. Na Espanha, entre 1255 e 1280, Afonso X mandaria recompilar a legislação notarial. Em Portugal, a primeira manifestação conhecida de um notário parece ser a de P. Raolis (escritura de Primus et Publicus Tabellio Domini Regis A. Juratus in Ulixbona).

No ano de 1445, foram promulgadas as Ordenações Afonsinas, o mais antigo código dos tempos modernos, com uma estruturada função notarial (depois, em 1521 foram promulgadas as Ordenações Manuelinas; e em 1603 as Ordenações Filipinas, com novas

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determinações sobre o notariado), sendo ainda aí aplicável toda a legislação portuguesa como disposição da norma notarial brasileira.

No Brasil, que seguiu a vertente latina proveniente da sistemática romano-germânica, anota-se que a Carta de Caminha foi o primeiro ato notarial (em forma de ata, datado do nosso próprio descobrimento). Pero Vaz, posto que não fosse oficialmente escrivão, exerceu de fato a função notarial ao narrar a descoberta das novas terras: “... de tal inocência, riam, brincavam e dançavam ao som de um tamboril, como se fossem mais...

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