Queiloscopia: um método odontolegal de identificação humana

AutorLarissa Chaves Cardoso Fernandes/Patrícia Moreira Rabello/Bianca Marques Santiago
Páginas251-282

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O ato de identificar é considerado uma das funções mais importantes da tarefa forense, não devendo o mesmo ser confundido com reconhecimento. Reconhecer é o ato de conhecer de novo, ou seja, é uma afirmação laica, de um parente ou conhecido, sobre alguém de quem se diz conhecer ou que é de sua convivência. O reconhecimento também pode ser entendido como uma identificação empírica e subjetiva, na qual o rigor científico é inexistente. No campo médico-legal e/ou odonto-legal, a ação de reconhecer normalmente é visual e realizada por parentes ou conhecidos da vítima, fazendo com que tal constatação se torne bastante suscetível a enganos e falhas. Essas imprecisões ocorrem, na grande maioria das vezes, não por má fé das pessoas que fazem o reconhecimento, mas devido às próprias limitações dessa prática, que pode ser influenciada pelo estado emocional dos responsáveis pelo ato. Já identificação é um procedimento científico médico-legal que utiliza elementos antropológicos e antropométricos para se chegar à identidade do que é desconhecido. Em outras palavras, identificação é o estabelecimento de caracteres ou um conjunto de qualidades que tornam algo/alguém diferente das outras coisas/pessoas e igual apenas a si (DARUGE; DARUGE JÚNIOR; FRANCESQUINI JÚNIOR, 2017; FRANÇA, 2015; GALVÃO, 1996; VANRELL, 2009).

A identificação humana é fundamental no que se refere a critérios pessoais, sociais e legais. Atualmente, para um processo de identificação rápido e seguro, os profissionais forenses fazem uso, sobretudo, de três meios de identificação primários: impressões digitais, comparações dentárias e exame de DNA. No entanto, não é sempre que esses métodos estão disponíveis, seja em quantidade e/ou qualidade, para auxiliar na determinação da identidade do que se busca, sendo necessário utilizar técnicas menos conhecidas para solucionar o caso (CALDAS; MAGALHÃES; AFONSO, 2007; LIMSON; JULIAN, 2004).

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O aparelho estomatognático oferece possibilidades de identificação pela Ciência Forense, dentre as quais a Queiloscopia (do grego, "Cheilos", lábios; "Skopein", marcas). Essa técnica refere-se ao registro e à classificação das características labiais, no que se diz respeito à espessura, disposição comissural e impressões produzidas pelo arranjo de linhas do vermelhão do lábio, realizadas por um indivíduo em determinado substrato. Do ponto de vista científico, a Queiloscopia está fundamentada no fato do lábio mucoso ser recoberto por pequenos sulcos, que indicam diferenças individuais por responderem a uma base genética. Tais marcas são, desta forma, exclusivas de cada pessoa e capazes de individualizar, inclusive, gêmeos monozigóticos (ABIDULLAH, et al., 2015; ADAMS, 2003; BARROS; SILVA; GALVÃO, 2006; CALDAS; MAGALHÃES; AFONSO, 2007; FRANÇA, 2015; JEERGAL et al., 2016; MOSHFEGHI et al 2016; PRABHU; DINKAR; PRABHU, 2012; SAAVEDRA, 2005; SARASWATHI; MISHRA; RANGANATHAN, 2009).

Os sulcos labiais são únicos e imutáveis, sendo possível, através dos mesmos, identificar determinados padrões dessa estrutura anatômica a partir da sexta semana de vida intrauterina. Após esse período, os padrões de sulco labial raramente mudam, inclusive diante de infecções que acometem a cavidade oral, a exemplo da herpética. Acredita-se que apenas as patologias capazes de causar perdas substanciais de tecido mole, como as queimaduras, são consideradas excludentes ao método queiloscópico (FRANÇA, 2015; MOLANO et al., 2002; MOSHFEGHI et al., 2016; NEVILLE et al., 2004; VALENZUELA et al., 2000; VERMA et al., 2015). Mas, assim como as impressões digitais, os desenhos labiais, por estarem presentes em uma estrutura de tecido mole, passam por mudanças após a morte do indivíduo, não sendo, desta forma, um meio de identificação perene. É possível identificar cópias labiais, em bom estado de conservação, colhidas num período de tempo inferior a vinte e quatro horas post mortem. Além disso, cadáveres fixados durante quarenta e oito horas e mantidos a uma temperatura ambiente de 21°C não apresentam alterações significantes das medidas antropométricas, apesar de haver ligeira redução da espessura labial (UTSUNO et al., 2005).

As impressões labiais respeitam o princípio técnico da praticabilidade, sendo sua obtenção simples, rápida e de baixo custo. Tais marcas sulculares podem ser encontradas sob a forma visível ou latente. No primeiro caso, são resultado do manuseio de produtos cosméticos, tinta, sangue, sujeira ou qualquer outro material com capacidade de impregnar seu colorido no vermelhão dos lábios e fixar-se contra uma superfície, o que facilita a localização do vestígio pela equipe pericial. Já o segundo tipo é mais comum por ser produzido por substâncias expelidas pelo próprio organismo do agente, como suor e gorduras. Mesmo não visíveis, todas as cópias do lábio são importantes. O processo de investigação de

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impressões latentes se dá partindo-se do princípio que o vermelhão dos lábios possui como constituintes glândulas salivares menores, além de glândulas sebáceas que, juntamente ao efeito lubrificante da língua, leva à possibilidade da existência de impressões invisíveis ou latentes, que podem ser localizadas com o uso de fluorescência e agentes químicos reveladores (CASTELLÓ; SEGUÍ; VERDÚ, 2005; DWIVEDI et al., 2013; NAVARRO et al., 2007).

O método da Queiloscopia ainda não tem uma padronização, ou seja, um sistema único e universal de classificação. Apesar disso, alguns estudiosos já tentaram contribuir com a técnica, provavelmente na tentativa de cada investigador procurar melhorar o sistema anterior ou até por notar alguma característica diferente e adicionar ao seu estudo. Somado a isso, não foi definido um número ou quantidade de pontos coincidentes entre duas impressões para se indicar e confirmar uma identidade. Mas tal fato não impede, por exemplo, que odonto-legistas confrontem impressões deixadas recentemente em objetos ou pertences, como copos, taças, pontas de cigarro, guardanapos de papel ou de tecido com marcas de batom e, até mesmo, almofadas ou outros itens utilizados em sufocações diretas (BARROS; SILVA; GALVÃO, 2006; FRANÇA, 2015; VANRELL, 2009).

O estudo dos sulcos das estruturas anatômicas labiais foi primeiramente mencionado pelo antropólogo Fisher, em 1902, mas foi só em meados de 1930 que o estudioso Diou de Lille conseguiu desenvolver pesquisas que faziam uso de tais marcas labiais na área da criminologia. Em 1932, Edmond Locard, um dos maiores criminalistas franceses, reconheceu e recomendou o uso de cópias do vermelhão dos lábios para a identificação de uma pessoa, tratando esse método como sendo auxiliar às outras técnicas existentes à época (CALDAS; MAGALHÃES; AFONSO, 2007; HERRERA; FERNANDES; SERRA, 2013; PRABHU; DINKAR; PRABHU, 2012; PUEYO; GARRIDO; SÁNCHEZ, 1994; SHARMA; SAXENA; RATHOD, 2009).

Contudo, até 1950, a Antropologia se limitava apenas a mencionar a existência desses sulcos, não sugerindo uma utilização prática para tal fenômeno. Foi então que, em 1950, o norte-americano Lemoyne Snyder, em seu livro intitulado "Homicide Investigation", propôs usar cópias dos sulcos encontrados na região de mucosa labial para a identificação. Snyder apresentou um caso mostrando que as características labiais são próprias e únicas de cada pessoa, assim como ocorre com as impressões digitais, sendo, por isso, considerado o percursor e o pai da Queiloscopia (FRANÇA, 2015; HERRERA; FERNANDES; SERRA, 2013; SINGH; CHHIKARA; SINGROHA, 2011; SUZUKI; TSUCHIHASHI, 1971; VANRELL, 2009; VERMA et al., 2015).

O brasileiro Martin Santos, em 1966, durante o IV Congresso Internacional de Medicina Forense, em Copenhague, apresentou um sistema simples para clas-

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sificar as linhas e sulcos labiais, sugerindo que tais marcas fossem divididas em dois tipos (Tab.1) (CALDAS; MAGALHÃES; AFONSO, 2007; FRANÇA, 2015).

Tabela 1 - Classificação de Martin Santos (1966). Fonte: PRABHU; DINKAR; PRABHU, 2012.

Suzuki e Tsuchihashi, em 1971, desenvolveram um método de classificação que aliou a clareza da descrição e a facilidade de entendimento, sendo, talvez, por isso, o mais utilizado nas pesquisas atuais sobre Queiloscopia. Baseia-se na forma e no trajeto dos sulcos da impressão labial utilizando, para isso, os eixos vertical e horizontal (Tab. 2) (CALDAS; MAGALHÃES; AFONSO, 2007; FRANÇA, 2015; PEREIRA, 2012; PUEYO; GARRIDO; SÁNCHEZ, 1994; SUZUKI; TSUCHIHASHI, 1971).

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Tabela 2- Classificação de Suzuki e Tsuchihashi (1971). Fonte: CALDAS; MAGALHÃES; AFONSO, 2007; JEERGAL et al., 2016.

José Maria Dominguez e colaboradores, no ano de 1975, desenvolveram uma metodologia classificatória fundamentada nos estudos de Suzuki e Tsuchihashi. Esses autores observaram uma ligeira variação nas ranhuras Tipo II: apesar das ramificações ocorrerem, na maioria das vezes, para cima no lábio superior e para baixo no componente inferior, como já ditas pelos pesquisadores japoneses, existia outra forma, chamada de II0, na qual a bifurcação acontecia ao contrário (CALDAS; MAGALHÃES; AFONSO, 2007; DOMINGUEZ; ROMERO; CAPILLA, 1975).

Em 1979, surgiu a classificação de Afchar-Bayar, baseada em seis tipos (Tab.3) (AFCHAR-BAYAR, 1978; CALDAS; MAGALHÃES; AFONSO, 2007).

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Tabela 3 - Classificação de Afchar-Bayar (1979). Fonte: CALDAS; MAGALHÃES; AFONSO, 2007.

Outro sistema de classificação foi sugerido por Renaud (1973), sendo considerado o mais completo dentre os demais. Nele, os lábios são divididos em duas metades, direita e esquerda, totalizando quatro quadrantes (dois superiores e dois inferiores). O autor descreveu as ranhuras labiais em 10 tipos, de modo que letras maiúsculas designam o lábio superior e minúsculas, o lábio inferior (Tab.4) (CALDAS; MAGALHÃES; AFONSO, 2007; DOMIATY et al.; 2010; PEREIRA...

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