A quebra do princípio da insignificância com fundamento na reiteração criminosa

AutorEduardo Machado Schuster/Alberto Wunderlich
CargoAcadêmico do Curso de Direito da Universidade Luterana do Brasil Estagiário da 2a/Advogado Mestre em Direito (Università degli Studi Roma Tre) Professor de Direito Penal e Direito Empresarial
Páginas17-23

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Introdução

Boa parte dos princípios que regem o direito penal brasileiro é encontrada expressamente no estatuto maior; outros, entretanto, são frutos de teorias e de longos estudos acerca dos mais variados temas, e que são aceitos pela nossa Constituição, apesar de não estarem lá de forma expressa. O princípio da insignificância, objeto deste trabalho, é um exemplo: de aplicação bastante complexa, não é encontrado de forma expressa no nosso ordenamento legal.

O princípio da insignificância será abordado ponderando-se especialmente a sua caracterização e aplicação frente aos vetores propostos pelos tribunais superiores, mais especificamente a sua não aplicação quando o réu for reincidente.

Este trabalho está dividido em três partes: na primeira aborda-mos o princípio com enfoque conceitual, as teorias que o utilizam, bem como os pensadores que o consolidaram. Na segunda, veremos os vetores propostos pelos tribunais superiores e sua aplicabilidade. Por fim, analisaremos o HC 114.340, não conhece o princípio da insignificância devido aos maus antecedentes do réu; e também veremos a jurisprudência em relação ao tema.

O princípio da insignificância

O direito penal brasileiro é norteado, assim como outros ramos do direito, pela norma constitucional. Esta sofreu, em sua concepção, uma demasiada influência de diversos princípios, como bem salienta Ivan Luiz da Silva:

“No que concerne à Constituição brasileira, a existência desses princípios é expressamente reconhecida na denominada cláusula de reserva, prevista em seu art. 5º, § 2º, que assim preconiza: ‘os direitos e garantias expressos nessa Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte’.”1

É possível perceber que a Constituição Federal de 1988 é composta por diversos axiomas que delimitam o direito penal, porém não veda o uso de outros princípios não constantes em seu corpo, os quais surgem das mais variadas fontes. Alguns desses princípios são provenientes da doutrina, como é o caso do princípio da insignificância, e, como exposto por Ivan Luiz da Silva, é aceito pela carta política.

O princípio da insignificância teria se originado da máxima latina minimis non curat praetor, que tem como significado a necessi-dade de o magistrado desprezar os casos ínfimos para cuidar dos

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mais expressivos e de maior relevância. Acredita-se que tal brocardo tenha surgido no direito romano, e, como consequência, dado surgimento também ao princípio da insignificância. Porém, criticase tal posicionamento devido ao fato de o direito romano ter como base o direito privado e não o direito público, em que está inserido o direito penal,
podendo-se chegar à conclusão de
que este princípio
não emergiu nesse
contexto histórico.

Mauricio Antonio
Ribeiro Lopes
sustenta que o princípio da insignificância é decorrência
lógica do princípio
da legalidade; é
evolução do próprio direito, defendendo ele que o princípio da insignificância cristalizou-se no Iluminismo, momento em que se pugnava por direitos e garantias ao povo. Ribeiro Lopes assim explica:

“O princípio da legalidade, como inferência do individualismo político, encontrou ressonância entre os enciclopedistas, filósofos do direito natural e iluministas, consequentemente, o tratamento mais sistematizado e fundamentado do princípio da insignificância.”2

Não há como se falar em princípio da insignificância sem mencionar Claus Roxin (considerado o pai desse princípio), que, em 1964, criou definições para aplicá-lo “como princípio de validez geral para a determinação do injusto”3. Para Roxin, o princípio da insignificância “permite na maioria dos tipos penais fazer-se a exclusão, desde o início, dos danos de pouca importância”4. Percebe-se que objetivo do princípio da insignificância é o mesmo até os dias atuais, ou seja, excluir da tutela jurisdicional, desde o come-ço, os fatos típicos considerados irrisórios.

Conceito

O conceito da insignificância é de difícil sintetização, pois escassa é a boa doutrina em relação ao tema. O princípio da insignificância não é abordado diretamente pela lei, muito menos pela Constituição, ficando a cargo da doutrina e da jurisprudência conceituarem o tema.

O princípio da insignificância, como o próprio nome já esclarece, tem como objetivo excluir da esfera judicial fatos tidos como irrelevantes, ou seja, que não tenham necessidade de serem apreciados pelo Poder Judiciário, e que possam ser resolvidos pela esfera administrativa ou civil. Isso também evita o desperdício de tempo do Estado para julgar os processos, saudando, dessa forma, o princípio da celeridade processual.

O conceito do princípio da insignificância também é bastante divergente entre os doutrinadores. Ivan Luiz da Silva adota a linha de que tal princípio deve ser analisado sob o aspecto quantitativo e qualitativo do grau da lesividade da conduta típica, e adota a forma de interpretar o tipo penal de forma restritiva:

“De nossa parte, conceituamos o princípio da insignificância como aquele que interpreta restritivamente o direito penal, aferindo qualitativa e quantitativamente o grau de lesividade da conduta, para excluir da incidência penal os fatos de poder ofensivo insignificante aos bens jurídicos penalmente protegidos.”5

A análise qualitativa e quantitativa, tese adotada por parte da doutrina, leva em consideração o valor social que o fato típico teve, ou seja, analisa o valor social da conduta, sua magnitude, permitindo, dessa forma, excluir os fatos considerados de menor valia. Assim, por exemplo, poderíamos afastar da tipicidade o agente que puxa algumas folhas de uma árvore sem prejudicá-la ou causar danos maiores, evitando-se a moção do Judiciário para julgar tal fato, ganhando-se em economia e agili-dade processual. Ademais, evitarse-ia punir injustamente alguém que, apesar de praticar fato típico, não cometeu um crime propriamente dito. Francisco de Assis Toledo conceitua o princípio em tela como aquele que “se revela por inteiro pela sua própria denominação, o direito penal, por sua natureza fragmentária, só vai até onde seja necessário para a proteção do bem jurídico. Não deve ocupar-se de bagatelas”6. O mesmo autor ainda cita alguns exemplos sobre a aplicação do princípio da insignificância:

“Assim, no sistema penal brasileiro, por exemplo, o dano do art. 163 do Código Penal não deve ser qualquer lesão à coisa alheia, mas sim aquela que possa representar prejuízo de alguma significação para o proprietário da coisa; o descaminho do art. 334, § 1º, d, não será certamente a posse de pequena quantidade de produto estrangeiro, de valor reduzido, mas sim a de mercadoria cuja quantidade ou cujo valor indique lesão tributária, de certa expressão, para o Fisco.”7

Uma forma concreta de se demonstrar o que Francisco de Assis Toledo defende é o que consta na Lei 10.522/02. Sem adentrar ao mérito da referida lei, podemos dizer que o art. 20 reza que descaminho inferior a dez mil reais deve ser considerado atípico. Para se chegar a tal conclusão,

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basta fazer simples análise dos julgamentos do STF, o qual vem considerando atípicos os fatos em que o valor não ultrapassa os dez mil reais. Dessa forma, o STF não respeita os próprios vetores, analisando apenas o valor sonegado sem mencionar os demais elementos caracterizadores do princípio, criados com o intuito de o caracterizar.

Vetores do STF para caracterização do princípio da insignificância

O Supremo Tribunal Federal, ao apreciar o Habeas Corpus
84.412, acerca de um furto, criou pela primeira vez uma forma de caracterizar objetivamente ou não o princípio da insignificância. O julgamento, que teve como relator o ministro Celso de Melo, tratava sobre o furto de uma fita de videogame avaliada em R$ 25,00, equivalente a 9,61% do valor do salário-mínimo vigente na época do fato. No julgamento do dito Habeas, estabeleceu-se os seguintes critérios para aferição do princípio da insignificância: a) mínima ofensividade da conduta do agente; b) nenhuma periculosidade social da ação; c) reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento; e d) inexpressividade da lesão jurídica provocada:

“Ementa: Princípio da insignificância – Identificação dos vetores cuja presença legitima o reconhecimento desse postulado de política criminal
– Consequente descaracterização da tipicidade penal em seu aspecto material – Delito de furto – Condenação imposta a jovem desempregado, com apenas 19 anos de idade – Res furtiva no valor de R$ 25,00 (equivalente a 9,61% do salário mínimo atualmente em vigor) – Doutrina – Considerações em torno da jurisprudência do STF – Pedido deferido – O princípio da insignificância qualifica-se como fator de descaracterização material da tipicidade penal – O princípio da insignificância – que deve ser analisado em conexão com os postulados da fragmentariedade e da intervenção mínima do Estado em matéria...

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